NÍVEL
Naná e Joãozinho costumavam brincar daquela coisa sempre que possível. Aguardavam os dias onde o sol raiava mais forte e o vento era quem conduzia o resto. Pegavam dois rolos de costura da mãe e usavam como linha de pipa para, após o almoço, ficarem os dois irmãos próximos ao cercado de madeira feito pelo pai, onde amarravam suas sacolas de plástico reciclável e deixavam o sopro celeste levantar seus “papagaios” de saco de mercado.
Ao voltarem da escola, tomavam banho, trocavam de roupa e se saciavam com o arroz, feijão e frango que a mãe preparava. Sebastiana era costureira e cuidava dos filhos enquanto o marido, Sebastião, trabalhava em fábricas de reciclagem produzindo sacolas biodegradáveis. A cidade estava cada vez mais cinza, porém a noite ela brilhava com seus outdoors luminosos, placas, faróis de carros, bares e salões de festas repletos de gente bonita e pesada. Todos ali pesavam mais que o normal, entretanto não era o corpo que pesava, mas a alma.
Nalva, de onze anos e João Batista, de nove, puxavam e repuxavam a linha que cortava o imenso céu azul.
— Só sobrou a gente, né mana.
— Só. Acho que o pai vai comprar uma casa lá embaixo e vamos todos descer.
— Você quer descer?
— Ah! Sei lá. As meninas da minha sala vivem trazendo umas coisas que compraram numa loja que esqueci o nome. Fico triste quando mostram. Tenho vontade de vestir aquelas jaquetas com lantejoula que elas usam, diferente das blusas que a mãe faz. Aí quando chego em casa vejo onde moro e fico feliz. Gosto de morar aqui.
O momento de falar era aquele. Os sacos descartáveis subiam mais um pouquinho e se distanciavam mais.
— Sabe — dizia o caçula enquanto enrolava mais um pouco de linha em sua mão — outro dia os e meninos trouxeram um salgadinho. Nem me deram um pouco. Parecia tão gostoso. O cheiro me deixou com fome, mas eu já tinha comido a maça que a mãe deixou. Mesmo assim, eu queria.
O vento fazia a linha tremular e na leveza das mãos e objetos que flutuavam, subiam como aves presas em barbantes que duas crianças sustentavam em seus dedinhos finos.
— Nossa. Por que não te deram nenhum?
— Eu não pedi. Fiquei com vergonha. A maioria ali chega de carro na porta da escola e o pai busca. Só a gente ainda vai de ônibus avião. Pelo menos gosto do tio que traz a gente.
— O seu Manoel? Ele é engraçado. Dizem que vai se aposentar.
A conversa seguia sem tirarem os olhos das duas sacolas brancas que voavam no alto enquanto o vento pedia mais linha e impulsionavam-nas para longe. O brilho do sol do entardecer reluzia entre a transparência que balouçava no ar. A mãe já não mais trabalhava com costura, uma vez que todos os vizinhos que tinham desceram e foram morar na cidade. Somente Sebastião e sua família ainda habitavam no céu na única rua chamada Cumulus Nimbus.
O sol, abaixo das nuvens de chuva que se formavam, andava lentamente para o seu poente, porém, essa nuvem, uma vez que não era feita de água, permanecia no mesmo lugar. Não se desfazia. Ninguém sabia como foi feita. Nunca asfaltaram nem colocaram calçada ali. O prefeito da cidade não investia muito nas casas que havia no céu. Aquela rua já fora maior e mais populosa. No entanto, o progresso atraiu boa parte das famílias e então numa jornada de Vidas Secas, se retiraram do céu e migraram em busca de novos empregos e melhores oportunidades de vida. Conforme as pessoas desciam, o espaço de suas casas “chovia” e desaparecia. Todas as casas e seus respectivos espaços na rua de nuvem choveram e sumiram. Exceto a dos quatro que ainda estavam por lá.
— Gosto daqui, Naná. Mas, bem que o pai podia comprar mais coisas legais.
— Que coisas?
— Não sei. Umas paradas mais brilhantes, mais de metal. Tem um aluno na sala que já tem um camelo de ferro.
— Bicicleta?
— É. E você quer roupas e outras coisas chatas de menina.
— Pelo menos o pai ainda te traz uns brinquedos legais.
— Ah! Exibida! A última boneca que ele te deu era mais cara que meu Batman e meu Homem-Aranha.
As sacolas subiam e desciam, assim como os assuntos e o tom da voz de cada um. Nalva colocou um dos braços na cerca. Abaixou a cabeça e viu algumas frestas entre as nuvens. Dava para ver os prédios e as pessoas, cada uma com uma roupa diferente; as avenidas e os carros que iam e vinham. Quando queria continuar olhando para baixo, logo se lembrou da advertência do pai:
“Não fiquem olhando para baixo. Não se enganem com o chão. Ali não tem nuvem, mas fumaça.”
Levantou a cabeça e seguiu empinando sua sacola. Ao lado, seu irmão fitava na linha da irmã:
— A minha está mais alta. Hehehe.
— Você é mais leve. Só tem um cabeção.
E entre cócegas ficaram por lá sem se dar conta que o dia, assim como a vida e o vento, passava.
À noite o pai desembarcava do avião-ônibus que o deixava perto de casa. Não havia perigo das crianças caírem, tendo em vista que a cerca que construíra era grande e forte. O pedaço de rua que ainda restara era suficiente para construir outra casa ao lado e plantar um jardim. Nunca houve relato de que alguém caiu de lá. A nuvem não deixava e ninguém pensava em se matar. Não ali em cima, onde as almas eram leves e despreocupadas. Sebastião, sempre que podia, voltava com os bolsos cheios. Temia que um dia, viesse afundar devido o peso da mochila pesada com roupas sujas. Ao abrir a porta de casa, Sebastiana, que sempre lhe cumprimentava com um beijo, dessa vez não foi até ele. Os filhos o receberam beijando-o na entrada:
— Trouxe o que hoje, pai?
Ele não gostava dessa pergunta. Temia e disfarçava:
— Hoje vim com uma surpresa pra vocês. Eu apresento... ISSO!
Tirou dos bolsos duas barras de chocolate. Pequenas, mas as crianças nunca tinham comido maiores. Nem sabiam que existiam maiores que aquelas.
Os pulos de alegria foram efusivos e rasgaram com avidez o papel prateado, devorando a barra em um minuto.
O marido fitou os olhos na esposa, que arqueou as sobrancelhas respondendo num riso fraco:
“Que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”
Animado com a fagulha de sorriso da mulher, abraçou-a e continuou:
“Que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.”
Ela interrompeu:
— Agora vai tomar banho, amor. Você está fedendo. Vai seu “pequeno sujo!”
Ao contrário das crianças, o casal, desde aquele momento, permaneceu em silêncio. Fazia quase quatro meses que a última família se mudara para baixo e abandonara a nuvem. Sebastião sabia do que se tratava, dado que, há tempos notava que a esposa nunca mais fechou a janela. Diversas vezes a pegou olhando o vazio do céu, que um dia não fora:
“Ali morava os Cunha. Hoje os filhos deles são formados”.
“Angélica quase desistiu do casamento, mas o marido levou-a. vivem bem. Abriram um negócio próprio lá embaixo. Não dependem mais de patrão”.
Ele não gostava desses assuntos, já que evitava deixar o clima pesado dentro de casa.
Antes de dormir, ela, que já estava sem sono (não podia esperar mais. O momento de falar era aquele) iniciou:
— Sebastião?
Ele não gostava de ser chamado pelo nome. Evitava chamar sua esposa de Sebastiana:
— Oi, vida?
— Você não acha que já era hora de...
Sebastião se sentou na cama:
— Descer?
— Sim.
— Não vou perguntar por quê. Sei do motivo.
— Eu sei que sabe. Não quero ser chata, mas é que... Acho que precisamos de algo melhor.
— Andou olhando para baixo, amor?
— Não. Ninguém aqui nessa casa quebra as regras. Só penso comigo mesma: se a Angélica pôde, nós também podemos.
— Dá aqui o celular, meu bem.
— Meu celular? Pra quê?
— Por favor. Somos um casal, não?
Ela entregou. Sebastião acessou a galeria de imagens e encontrou diversas fotos de lugares, roupas, comidas, e objetos brilhantes e de tamanhos variados.
— Eu sabia que essa mulher tinha alguma coisa envolvida. Foi ela que te mandou as fotos, não é? Não quero nem imaginar do que falou.
— Amor, você sabe que não sou interesseira como ela.
— Meu Deus! Se insinuei que te chamei de interesseira, me perdoa. Me perdoa.
Sebastião sabia que todos os antigos moradores de Cumulus Nimbus estavam crescendo em várias áreas lá embaixo, porém temia que sua esposa ficasse pesada como viu tantas pessoas ficarem. Sua maior preocupação era com os filhos. E se eles se esquecessem do céu um dia? Não sabiam como era ver o céu ali no chão.
— Amor, escuta. Não é o que você pensa. Lá tem tudo isso, sim. Porém... Tem algo a mais... Que não sei explicar, que faz as pessoas ficarem...
— Gordas? Obesas?
— Eu diria "pesadas". Cheias. Saturadas. E você sabe que a nuvem não suporta muito peso.
— Faça-me o favor, Sebastião. Isso tudo é medo de tentar? Se arrisque.
— Eu já me arrisco, amor.
— Se arrisque mais. Estou me sentindo inválida. A vida toda fui costureira, mas aqui. Agora que todos desceram, rodeados de lojas, não tenho serviço, não tenho com quem conversar e não recebo visitas. Fico em casa o dia todo só lavando, passando e cuidando das crianças.
— Amor... São nossos filhos. Você sabe que nunca me importei com que trabalhasse. Mas sabe que não confio em ninguém para educá-los melhor que você.
Sebastiana continuou no mesmo tom:
— Ainda mais agora que vejo que minhas amigas... Ou melhor, ex-amigas estão se dando bem e meu esposo não aceita que nosso tempo aqui já passou.
O esposo sentiu um leve tremor na casa. Ao que parece somente ele percebeu que a nuvem abaixou um pouco.
— Vida. Tudo bem. Vamos conversar sobre isso amanhã?
— Sebastião, eu não saio de casa. Se não fosse meu celular, não teria contato com ninguém. A Angélica me disse que o filho dela vai casar num salão que mais parece um castelo. E não foi muito caro. Olha a foto aqui.
Ela mostrou o celular. Na tela, quase não cabiam o pai, a mãe do noivo, ele e a noiva, de tão gordos que estavam.
— Meu bem... Eles estão pesadíssimos. Nunca passou pela sua cabeça que um dia podem...
Ela se sentou e gesticulou:
— Eu é que pergunto se nunca passou pela sua cabeça que existe possibilidade de vivermos melhor do que já vivemos e você está com medo. Não seja um frouxo como o marido da Fernanda. Viu o que aconteceu com ela? A mulher ficou murcha dentro de casa. Imagine só! Tristeza no céu. Pois é assim que me sinto, Sebastião. A Nalva já está virando moça. Vai casar com quem? O Joãozinho, coitado, chegou da escola esses dias me perguntando o que era um cinema. Onde já se viu?
A casa tremeu outra vez e a nuvem abaixou mais um pouco. Pela janela aberta o homem viu que as estrelas que estavam ali ficaram mais acima.
— Amor, por favor. Tudo bem. Veremos o melhor jeito.
Ela se levantou. Sua voz se ergueu também.
— Não, Sebastião. EU que fico em casa. EU que cuido das crianças. EU que deixo tudo pronto. Pra quê? Pra você subir e descer. Você pelo menos contempla cada cidade, prédio, estação e esquina. E eu? Eu queria trocar esse guarda-roupa. Jogar essas botas fora. E tem outra: quero outra profissão. Não quero mais ser costureira. A partir de hoje pretendo seguir outro rumo!
— Que rumo?
— Não sei. Só depende de você. Seus filhos estudam numa escola ruim e andam de avião-ônibus. Já qualquer outra pessoa que conheço tem pelo menos um carro para ir e vir por onde quiser. E nem isso você teve a capacidade de...
— JÁ CHEGA! CALA ESSA BOCA!
Sebastiana emudeceu diante do trovejar do marido. Ele endureceu o maxilar e franziu a testa:
— TODA A VEZ A MESMA COISA! SEMPRE! EU SAIO DE CASA, PASSO UM INFERNO NAQUELA FÁBRICA DE SACOLAS E POR IRONIA MALDITA É VOCÊ QUE ESTÁ ME ENCHENDO? QUER VIVER IGUAL AOS OUTROS? VIVA! POR MIM TUDO BEM! EM BREVE MUDAREMOS PARA O CHÃO! AGORA ME DEIXA EM PAZ!
Alguém bateu na porta. Pela fresta viram as sombras de dois pares de pernas e pés com chinelos. Ao abrirem, Nalva segurava uma boneca e Joãozinho, com cara de choro, um pano de prato com gelo na testa.
— Mãe, o Joãozinho caiu da cama e bateu a cabeça.
— Oh meu Deus! Quando foi isso, filha?
— Agora pouco. A casa inclinou de repente! Acordei com ele chorando. Pensei que íamos...
Sebastião foi até o menino:
— Calma, filho. Deixa o pai ver. Vai ficar tudo bem. Já já passa.
E olhou para a esposa:
— Põe a Naná de volta na cama, amor. Daqui a pouco eu levo o João, está bem?
Depois daquela conversa e dos filhos voltarem para o quarto, o casal chorou e num beijo, se reconciliaram e adormeceram. Ainda acordada, Nalva reparou quando a casa se movia durante a noite e a nuvem se elevava, contudo, por poucos metros. Não retornou a altura inicial. Reconheceu porque a estrela que gostava não estava em sua janela.
Na manhã seguinte, Sebastião levantou sem falar com a esposa. Arrumou-se e foi para o ponto (em frente ao cercado) esperar o avião-ônibus. Sebastiana só se deu conta que o marido havia ido antes quando acordou com o ruído costumeiro que as turbinas faziam perto das nuvens. A tarde recebeu um telefonema dizendo que tinha boas notícias. A noite retornou com uma sacola cheia de coisas metálicas e brilhantes para os meninos e para ela. Até pizza ele trouxe. Houve roupas, brinquedos, bijuterias e coisas novas.
As crianças puderam exibir pela primeira vez algo novo para os colegas de escola. Embora fossem apenas os itens mais baratos dali, já era alguma coisa para alguém que nunca tivera nada de mais. Regressaram felizes e saltitantes ao chegar da escola. Sebastiana percebeu que foram brincar com as sacolas e as linhas, mas levando algumas parafernálias que o pai lhes dera. Conforme os dias se passavam ficavam cada vez menos em frente ao cercado empinando sacolas. Ela estava prestes a iniciar um curso que tanto queria fazer. Com a cara e a coragem se matriculou. As aulas eram à noite. Acertou com seu marido que ela ficaria com os filhos de dia e ele a noite, enquanto ela estudava.
Com o tempo, Nalva cresceu e estava se tornando uma bela jovem:
— Mãe, pede para o pai me trazer isso aqui, por favor?
Era maior em quantidade e em preço. As bonecas nem se comparavam as coisas que havia na lista. João Batista agora não gostava muito de ser chamado de Joãozinho. Preferia Batista ou só João.
— É assim que me conhecem na sala agora. — dizia.
Sebastiana estava cada vez mais atarefada com os estudos. As disciplinas e matérias do curso lhe consumiam os neurônios. Por sorte Nalva e João já lavavam os próprios pratos e limpavam algumas coisas para ela. Não iria ficar lavando cueca e calcinha de filho o resto da vida, pensava.
Ainda não decidiram se mudar. O marido saiu da fábrica de sacolas. Sebastião abrira uma oficina lá no chão. Conseguiu funcionários de confiança e prosperou. Ele e a esposa se viam mais nos finais de semana. Por vezes trabalhava no sábado e ela tinha que colocar a matéria a limpo. Em algumas tardes, Joãozinho brincava sozinho com a sacola. No céu, apenas um saco reciclável voava, torto e sem subir muito, já que estendia menos linha e ficava menos tempo. Chamava a irmã, porém ela estava conversando com algumas amigas novas que fizera.
— Ai, menino. Não sou mais criança. Empina você. Vai lá, fecha a porta que eu estou conversando.
Depois de muito suor, Sebastião pensava em abrir outra oficina, no entanto, sua esposa ainda queria se mudar para o chão. Ele, contudo, permanecia com a ideia de que não era hora, pois não tinha dinheiro o suficiente para comprar um terreno ou alugar um apartamento.
Anos se passaram e Sebastiana terminou o curso e começou a trabalhar na área que queria. Agora marido e mulher estavam empregados. Ela como designer em uma empresa, ele como dono de duas oficinas. Nalva ingressou na faculdade.
Em algumas tardes, João levava a sacola e a linha, porém só observava entre as nuvens, os carros, as motos; ouvia os ruídos metálicos e as músicas que tocavam lá embaixo. Encantava-se com as cores diversas e estilos diferentes de cabelo nos transeuntes que iam e vinham. Um dia avistou uma bela mocinha. Ela lembrava alguém de sua escola. Seu coração bateu forte.
De repente, num insight de maturidade espontânea, colocou o rolo carcomido de linha dentro da sacola, pegou impulso para trás e jogou para longe. Viu quando a sacola atravessou as nuvens de água com o peso do rolo plástico fazendo “tuff”.
Nunca mais empinou.
O casal, como quase não se via durante a semana, aproveitavam a companhia um do outro aos domingos. Pelo menos enquanto seus celulares não tocassem. E tocava sempre. Quando se irritavam, desligavam; o que durava só o momento de uma hora ou de um filme de televisão. Nalva não saia mais do quarto. João, em seu tempo de ócio, olhava pela janela:
— Você ainda lembra qual era sua estrela, Naná?
Ela não respondia e, se falava algo, dizia que era qualquer uma, já que só depois de velha percebeu que as estrelas mudavam de lugar.
— Bobagem. Coisa de criança. Fiquei bonita com esses brincos?
João reparava que a irmã não usava só brinco, mas roupas cada vez mais coladas. Teve nojo e saiu do quarto sem responder.
Os anos, assim como o vento e a vida, correram. A correria, no entanto, aumentava. O cercado envelhecia, embora Sebastião pintasse as paredes do lado de fora e decorasse com bugigangas a sala, a cozinha e o quarto do casal. A irmã mais velha pediu outro celular. Mais moderno. João, no caso, queria fazer artes marciais. Martelavam entre si quem ia tomar banho primeiro em alguns dias, tendo em vista os compromissos que iam de encontro aos horários de cada um.
— Caramba! Agora que você avisa?
Ainda assim, ainda priorizavam pelos apelidos carinhosos. Nalva era Naná, Sebastião era pai ou amor, Sebastiana era mãe ou meu bem. Apenas João não queria mais ser chamado de apelido. Dizia que ficava estranho e que não era mais um babão que não sabe nem se limpar. Certa vez, enquanto a irmã zombava dele, mostrou a cueca e abaixou diante de seus olhos.
— Criancinha tem isso aqui, sua vaca?
Os anos se passaram. Nalva iniciou a segunda faculdade. Conheceu um rapaz e se apaixonou. João Batista ainda não sabia o que queria ser e qual profissão exercer. Ajudava o pai com a segunda oficina. Era bom com números e cálculos. Ainda não namorava e a moça que vira aquele dia já namorava outro rapaz de sua sala. Sebastiana conseguiu uma promoção no trabalho. Subiu de cargo e ganhava bem mais. Suas roupas eram compradas em uma loja específica no centro da cidade. A mesma loja cara onde Angélica, sua amiga, começou a comprar. Achou o atendente um gato, mas fez desvanecer o flerte ao lembrar-se de esposo que nunca lhe traíra e sempre a tratou muito bem, apesar de que seu verdadeiro freio moral era tão somente o interesse em comprar tudo o que sempre quis e sentir-se livre e independente.
As noites de sono encurtaram. Os goles de café aumentaram. A porta do banheiro abria e fechava. O celular tocava e alguém tinha que sair de casa rapidamente para resolver isso ou aquilo. Quando a vontade batia, compravam. Agora podiam. Tinham condições e reconheciam o esforço próprio. A determinação. O sonho fora realizado. Por que não sonhar mais alto ainda? O casal conversava em seus rápidos passeios:
— Ai, meu amor. Como eu estava errado. Realmente era medo meu de tentar, querida.
- Meu bem, eu sabia que você me ouviria. Olha para nossos filhos. A Naná supera em beleza os filhos daquela perua da Angélica.
Ainda não haviam se mudado para a terra, entretanto, passavam mais tempo nela do que em casa e não perceberam que a nuvem tinha descido e estava cada vez mais longe do lugar original, o céu.
João decidiu fazer engenharia.
Nalva estava prestes a se casar com um moço rechonchudo. Sebastiana comprou uma casa simples na cidade para, segundo ela, descansar do estresse do dia a dia.
— Foi com meu dinheiro. Meu suor. — dizia ela quando o marido estranhava o porquê não queria passar o final de semana na casa do céu.
Sebastião já não aguentava olhar na cara de sua mulher. Não suportava sua voz:
— Você é uma porca. Olha como deixou minha mesa de trabalho. Só sabe gastar e gastar. E fala baixo que quero dormir um pouco.
A relação foi se desgastando, assim como uma nuvem ao sopro do vento da tarde.
Era de se esperar que acontecesse o que aconteceu, mas não da forma que aconteceu.
Sebastião contraiu algumas doenças de coração (uma da qual veio a falecer de infarto fulminante) devido a noites mal dormidas, bebidas, má alimentação e estresse devido aos muitos calotes que sofrera. Rompeu bruscamente com um sócio, contraiu muitas dívidas e perdeu a outra oficina, ficando apenas com uma. Traiu sua esposa com uma funcionária após uma discussão intensa que tiveram numa noite. Aliás, o casal não tinha horário para discutir. Bastava que um deles passasse do limite do básico das conversas. Tratavam-se mal e se dirigiam um ao outro apenas pelo nome. Sebastiana adquiriu ansiedade aguda e diabetes. Dormia mal e sentia dores constantes de cabeça e nos ombros. Nalva passava mais tempo na casa do noivo do que com os pais. Desistira do casamento e foram morar juntos; abriram um escritório e compraram um sítio com o que ajuntaram, porém, sequer tinham tempo para visitar o local porque havia muita papelada para resolver. João engravidara uma moça que conheceu numa festa. Ela perdeu o bebê, embora ele estranhe que a mesma tivesse abortado. Nunca mais se falaram.
Decidiram se mudar para a terra. Cada um foi para um lado. Abandonaram a casa na nuvem. A Cumulus Nimbus ficou deserta no ar.
Sebastiana continuou ganhando bem, mas virou uma compradora compulsiva. Nalva perdeu o contato com a família e nunca mais se ouviu falar dela e do seu companheiro. Sebastião faleceu deixando dívidas e uma oficina. João Batista quem assumira o negócio do pai por um tempo, depois despediu os funcionários e vendeu-a.
Ele comprou um apartamento pequeno e lá ficou sem casar. Sempre visitava a mãe.
Numa noite de chuva, decidiu andar pelas ruas. Nunca havia tomado banho de chuva quando morava lá em cima. Foi então que, enquanto andava pela calçada esburacada da cidade, reparou numa poça d’água e viu o próprio reflexo. Estava enorme. Seu rosto era inchado. Sua família ficou corpulenta. Olhando ao redor percebeu como todos ali eram enormes e pesados.
Lembrou-se do velório de seu pai. De como aquele cadáver começou a murchar no velório.
Continuou caminhando quando chegou próximo a um córrego aberto. Enxergou que alguma coisa estava presa entre um arbusto. Seu coração reconheceu aquilo. Desceu cuidadosamente e esticou a mão para pegar. Chorou. Chorou muito.
Sabia que não havia se enganado quando viu. Era uma sacola daquelas que seu pai produzia antigamente (não se fabricava mais daquele modelo). Abriu-a e procurou o rolo de linha. Teve esperança. Não achou. Somente água suja e mato.
Suas lágrimas se camuflavam em seu rosto pela chuva. Recordou de quando era pequeno, de quando morava no céu, quando a vida era leve como uma sacola ao vento e simples como uma linha de costura e cogitou, amargamente, que aquela chuva, porventura, não era um dia seu pedaço de nuvem no céu se desfazendo para sempre.
Quis levantar a cabeça. Não conseguiu. Voltou para casa, tomou um banho, trocou de roupa, apagou a luz, deitou-se e antes de dormir, fechou os olhos e decidiu, assim como todos os que desceram da nuvem, não olhar para cima nunca mais.