O Diabo ao pé da cama

No dia 20 de maio de 2020 eu acordei com o Diabo sentado ao pé da minha cama. A sensação de sonho embaçava meus sentidos e eu esfreguei os olhos numa tentativa de expulsar o intruso. Nada feito, ele continuava ali. Me encarava impassível, de olhar flamejante. Seus chifres pontiagudos e negros assomavam de sua cabeça disforme de bode. Seu corpo estava coberto por um manto muito escuro e maltrapilho. Ainda assim, conseguia ver suas mãos saindo pela abertura da manga, e elas eram humanas mas terminavam em cinco longas garras cor de terra molhada. Seus pés - cascos - repousavam serenamente no chão de madeira do meu quarto.

Eu devia estar assustada. Eu devia sair correndo e gritando, devia tentar repelir aquela criatura para longe de mim; mas eu só o encarei de volta. Seus olhos amarelos estavam pregados com força nos meus verdes. Algo dentro deles parecia se mexer, como um mar revoltoso cor de doença. O sol começava a iluminar o quarto, adourando o chão próximo da janela. O Diabo, sem tirar os olhos do meu, estendeu-me o braço. Levei alguns segundos para conseguir sair do estado de petrificação, mas por fim consegui colocar minha mão na dele. Que escolha eu tinha? Sua pele era áspera como lixa e quente como leite materno.

Ele ergue-se da cama, e então eu percebi que sua altura não devia ser menor que dois metros, sem contar os chifres. Ele andou, conduzindo-me delicadamente através da porta - à qual teve de abaixar muito para passar - até chegarmos na cozinha. Soltou minha mão e sentou-se. Na mesa, à sua frente, tinha um bolo de aniversário. Ele era cor-de-rosa, adornado com unicórnios e muito glitter. Em cima, duas velas formavam a composição “18”. Sim, era meu aniversário.

Eu fiquei parada observando aquela cena bizarra. Uma criatura enorme e enegrecida, sentada na cadeira da minha cozinha - que pelo tamanho parecia com adultos sentados em banquinhos de criança - com um bolo rosa e brilhoso na sua frente. Eu senti vontade de rir, mas achei que não seria uma boa ideia. Notei que ele esperava que eu me sentasse, e assim o fiz. Quando finalmente botei meu peso sob a cadeira, as velas se acenderam sozinhas. Não vou mentir, meu coração deu um pulo dentro do meu peito, pois aquela era a primeira demonstração (ainda que mínima) de que eu estava, de fato, diante de uma criatura sobrenatural. Minha garganta estava seca e eu não conseguia mais engolir sem fazer um esforço tremendo. Não queria, mas estava transparecendo medo.

Ele certamente o notou, pois pela primeira vez desde que chegara, tirou os olhos dos meus e deixou-os baixos, fitando suas mãos sobre a mesa de vidro. Quando eu achava que aquilo tudo não poderia ficar mais estranho, o Diabo começou a emitir sons. Minha boca foi se abrindo numa careta de horror, incredulidade e espanto, enquanto a voz rouca e bodeada do Diabo, entoava:

- Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida.

Aquilo certamente foi a coisa mais assustadora que eu vivenciei em toda minha vida. A voz da criatura não provinha de nada que existe no nosso conhecimento. Era como ouvir o som do abismo, como andar sobre ruínas de um tempo mais antigo que a própria Terra. E talvez o pior fosse o esforço enorme que ela fazia para proferir as palavras, como se seu aparelho fonador não tivesse sido feito para isso, mas que ele - em suas atribuições infernais - quebrou todos os protocolos para estar ali, falando português e cantando parabéns para mim. Tampei minha boca com as mãos para não gritar, e as lágrimas escorriam por sobre meus dedos. Eu soluçava e tudo o que queria era sair correndo, mas eu não conseguia. Minhas pernas pareciam cimentadas no chão.

O Diabo parou de cantar. Voltou seus olhos em minha direção, e o mar dentro deles pareceu um pouco mais calmo. Quase estático. Depois de alguns segundos, os quais acredito que ele esperava que eu me acalmasse, ele disse:

- Me desculpe por te assustar, Clarice. Não era minha intenção. Eu não convivo com humanos aqui na Terra há muito tempo e me esqueci em como eles podem se sentir com minha aparência e minha voz. Mas me lembrava que todos gostam de bolo, a mulher que me atendeu na padaria disse que meninas gostavam de rosa e desses cavalinhos com chifre - ele apontou as unhas tenebrosas para os unicórnios - e enfim, foi isso o que eu fiz, eu achei que ficaria feliz e que gostaria, só isso. Sinto muito, mesmo, você preferia o bolo azul? Ou você não gosta de bolo? Eu realmente não queria te ass….

Minha cabeça estava rodando. Ele estava num monólogo, nem olhava mais para mim, gesticulava com os enormes braços, revirava os olhos em suas órbitas, e seu semblante impassível, agora parecia triste. Quando notou que eu não estava mais acompanhando seu relato, ele calou-se. Baixou os olhos novamente, como que sentindo-se culpado. Por fim, tomei coragem para falar.

- Onde… onde está minha mãe? - a pergunta saiu baixa e entrecortada.

Ao ouvir minha voz ele levantou sua cabeçorra de bode, os olhos de maresia voltaram, ainda mais amarelos que antes. Muito devagar e medindo as palavras, o Diabo explicou-me que tivera de levar minha mãe embora hoje. Há 18 anos e 9 meses atrás, minha mãe sofrera um acidente de carro. Porém o acidente, não fora realmente um acidente, como eu até então achava. Ana, minha mãe, jogara seu carro contra aquela árvore de propósito. Ela deu entrada no hospital com hemorragia e pouco tempo depois estava em coma. Nesse dia, eles, minha mãe e o Diabo, se conheceram. Juntos, fizeram um passeio de barco, navegando um rio negro e fumegante, com cheiro de enxofre. O Diabo questionou sua decisão, e Ana explicou-lhe com muita calma que ela não aguentava mais viver daquele jeito. Ela já havia passado por cinco abortos, e sabendo que sua missão na Terra era a de amar e criar outro ser humano, se ela não conseguia fazê-lo, não tinha motivos para continuar lá. Muitas pessoas já chegaram lá pelos mesmos motivos e com as mesmas explicações. Mas o Diabo nunca havia conhecido uma mulher com olhos tão tristes como os de Ana. Mesmo ele, uma criatura tão antiga quanto o universo, foi engolido pela tristeza daquela mulher. Sem pensar, ele ofereceu a ela um acordo. Ela poderia voltar para a Terra, ela engravidaria e seu corpo teria forças para manter a gravidez. Por 18 anos ela poderia gozar de toda a alegria e a benção que aquele bebê traria à sua vida. Porém, no inferno, nenhum acordo vêm sem sacrifício. No 18º aniversário da criança, Ana teria de deixar a Terra - “ou morrer, como vocês dizem” - e ele voltaria para reivindicar o filho que era seu por direito. Ana aceitou. Sua morte foi pacífica. “E aqui estou eu!”, finalizou o Diabo, com algo que soava como um sorriso em sua boca.

Oh, nem em meus maiores pesadelos eu poderia aceitar aquilo. Aquela criatura havia matado minha mãe e agora se achava no direito de tomar-me para si. Não! Nada disso! Em um acesso de fúria completamente irracional, eu comecei a gritar. Peguei o bolo e arremessei-o contra o Diabo. Saí correndo, porta afora, com as lágrimas ofuscando minha visão. Corri por muito tempo, até meus pulmões queimarem como fogo. Olhei para trás, na certeza de que aquele vulto negro estaria em meu encalço, mas não estava. Passei o dia todo na rua, me escondendo em parques e andando pela sombra. Por fim, no cair da noite, a fome e o cansaço obrigaram-me a voltar para casa. Entrei cautelosa, com o coração batendo feito um tambor. Tudo estava silencioso. Não havia bolo algum na cozinha. Por alguns - maravilhosos - minutos, acreditei que tudo não havia passado de um sonho ou alucinação. Procurei por minha mãe, e não a encontrei. Porém, encontrei uma carta sobre sua cama. Nela, com a caligrafia linda e estável que possuía - visivelmente ela escrevera a carta com calma e em paz - ela me relatava, de sua própria forma, tudo o que o Diabo já havia me dito. Finalizava a carta com “Ele é bom. Não tenha medo. Te amo e para sempre te amarei”. Quando meus olhos passaram pela última letra, eu senti outra presença surgindo no quarto. Não precisava olhar para saber que ele tinha voltado.

Durante 10 dias vivenciei mais profundamente o luto pela perda de minha mãe. Durante 10 dias ele me acompanhou. Não se aproximava e não me dizia nada, mas assomava-se em todos os ambientes, no canto do meu quarto, no espelho do banheiro, no sofá da sala, no fundo da sala de aula, andando no meio da multidão do shopping. Por fim, sabia que não havia outro remédio senão aceitá-lo. Ele estava ali, e não iria embora. Eu o deixei entrar.

Agora, devo ressaltar que não se atenham a estereótipos e lendas sobre o Diabo, o Tranca-Ruas, o Coisa Ruim, o Cão, o Tinhoso. Ele era sim o Senhor do Inferno. Ele tinha de cumprir seu papel, condenando pessoas sob leis que não fora ele quem criara - e que na realidade, ele questionara. Mas acreditem quando digo que muito do que se atribui a ele, de nada lhe diz respeito. Ele de fato, não era mau. Convenci-o a não me levar com ele por hora, mas viver comigo o máximo possível aqui na Terra. Ele me ensinou muitas coisas, ouviu meus problemas, assistiu filmes e cozinhou comigo. Eu o ensinei sobre os humanos, o amor, as guerras, as burocracias, sobre a vida. Claro que precisei aprender coisas do seu trabalho, e saber o que o futuro me reservava. Mas, por enquanto, durante minha breve passagem pela Terra, eu queria ser apenas eu mesma, uma jovem comum. Clarice, filha do Satanás.

Carol Santucci
Enviado por Carol Santucci em 20/05/2020
Reeditado em 20/05/2020
Código do texto: T6953335
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