O bar
Meus pés escaparam um pouco dos sapatos improvisados. Amarrei com displicência as partes superiores e a sola do resto de calçado que consegui num amontoado de lixo. Achei que serviriam um pouco mais, caso eu improvisasse com cadarços e ataduras. Escaparam. Meus dedos tocaram o chão úmido da terra daquela estação de trem onde ficava meu bar predileto. Tomei um pouco mais de cuidado com as pedras que ficavam entre os trilhos que deveria saltar para alcançar a plataforma. O bar se abria na plataforma da velha estação semiabandonada de minha antiga cidade... Não consegui lembrar se realmente nasci e me criei ali. Realmente não me importava. Estava feliz. Apesar de minha indiferença em relação à estética, e ao improviso de meus calçados, estava feliz. O bar é o templo do absurdo.
Era pouco mais da metade da tarde. O dia é lento quando estou me preparando para o ritual do bar. Meu caminhar geralmente é vagaroso e arrastado.
Meu gestual é pastoso e entrecortado. Um orgulho geralmente é o que sinto quando esses gestos e desalinhos se encaixam com o brilho trêmulo do sol no chão de meus passos. Sou todo acordado com meu ambiente e porte. A porta do bar é enorme. Tem uns vazados em metal que denunciam o costume arquitetônico de uma época esquecida. Um século morto e fora de moda como será este agora que habito. O bar, como templo, tem sua portada. Seu acesso. A porta está aberta e já consigo ver o dono do bar. Tão antigo e desusado como o próprio espaço. Paro um instante na porta. Minhas mãos tremem um pouco no batente pintado com uma tinta à base de óleo que desprende, em bolhas de ar, o descascado da cor. O dono do bar faz uma cara de enfastio e resignação quando forço meu sorriso mais complacente e peço:
- Põe aquela mística, Santos!
O balcão de compensado, um material vagabundo, um azul desbotado nas bordas carcomidas pelos cotovelos boêmios de gerações desta terra. Em pé, do lado, estavam dois homens conversando sobre futebol; não dei importância ao clube que discutiam e cantavam loas aos gols corriqueiros, às glórias inúteis do esporte. No instante exato que pedi a cachaça - a mística de todos os dias - eles se calaram e ficaram prestando atenção em minha postura. Projetei meu corpo para frente numa afronta ensaiada e gentil. O homem mais jovem, que antes falava alto, ficou quieto e apreensivo me observando. A cachaça foi até a risca do copo cheio de esperança. Ele ficou ainda mais abismado quando bebi, de um gole só, o líquido cristalino. Não esbocei caretas. Segui impassível. Depositei o copo vazio no balcão, vi que minha mão não tremia mais. Minhas unhas, todas sujas e crescidas, refletiram o opaco do azulejo também azul desbotado das paredes. Estava satisfeito. Sem falar nada para o dono do bar, que agora estava de costas pra mim, saí novamente para a plataforma. Sentei-me de costas à parede externa do bar e esperei o efeito da mística. Minha roupa estava exalando um cheiro acre de suor. Os panos totalmente desgastados e sem conserto. Encostei-me à parede fria, procurei meu cigarro amassado de palha. Risquei um fósforo ainda seco em meus bolsos e vi se aproximar de mim meu cachorro fiel. Seguia-me sempre na tarefa diária do templo. Chegou e se encostou em minha perna manca. Tentou morder minha calça, estraçalhando ainda mais meus andrajos. Eu estava feliz. Mas ainda não de todo satisfeito. A fumaça do cigarro amassado foi bonita de se observar, fez desenhos espiralados em volta de minha cabeça. Despedaçando-se em fitas esgarçadas na brisa morna do verão.
Ainda não satisfeito com minha ânsia filosófica, levantei-me novamente em direção à porta do bar:
- Mais um trago, mais um copo na risca da mística, meu caro!
Os homens que conversavam novamente com ânimo no balcão pararam mais uma vez o assunto para me observarem. Não queriam crer que eu ainda conseguiria verter mais um copo de absurdo. Filosofia do absurdo. Saberiam eles que na turva investida do álcool está a essência do absurdo? O absurdo de todas as conversas e filosofias do bar. Sentados na beira do abismo que é o balcão do bar. E o gole desceu um pouco mais custoso. O efeito era quase o que procurei incessantemente até aqui.
O homem mais jovem, um tanto alterado também, me encarou por um minuto nos olhos e nesse instante vi que ele entendeu minha busca:
Ele se viu no meu lugar, na minha magnificência e concluiu que poderia no futuro estar no meu lugar, na mesma posse daquele ou de outro lugar, na mesma posição que galguei. A cachaça subverte nossas percepções. O bar era nosso altar. Ministério.
Terminada a dose voltei ao meu lugar anterior na plataforma. Fazia isso a cada investida no balcão: tomava a cachaça e voltava para o mesmo lugar. Fiz isso três, quatro, sete vezes mais. A cachaça ia alterando aos poucos meu ânimo, meu destino, minha observação. A tarde azul, de um azul indefinido agora, sublinhava meu estar no mundo. Azul das horas mornas que vivi até aqui. O ontem não importou mais. Agora eu era um musgo na parede cinzenta da estação. Um trem repleto de pedra e esquecimento passou nesse momento, estremecendo o chão, apitando forte, esmagando meu cérebro de reminiscências no ranger das rodas de ferro, no ruído ácido dos vagões. No estampido da viagem. No percurso de minha razão almejada. Tudo entranhado na passagem do trem, na passagem da hora, na passagem da vida. No desgastar da pele, no desgastar das roupas, na fugidia conquista de um conforto esquecido. Tudo era tremor à procura da serenidade. Serenidade da pedra e da mente. Eu fazia parte daquele sentido que os homens, talvez absortos em sua pequenez, jamais atinariam. Jamais afinariam em uma estadia no bar.
O trem passou, encerrando a travessia azul de minha existência. Daqui do longe, vi meu cachorro apreensivo, latindo, enquanto os homens saíram do bar correndo, desesperados, recolhendo meus pedaços de carne e ossos que o trem teimou em arrastar pelos frios trilhos da estação de minha terra.