O Gramático

Tuntum, cidade de nome onomatopeico no coração do Brasil, é conhecida por sua gente alegre e festeira. O tuntuense é uma criatura que sempre tem um causo, uma piada, uma quadrinha na ponta da língua, disposto a conversar com qualquer forasteiro que chega a cidade. Célebre foi o caso de Seu Ibrahim, turco, caixeiro-viajante, vendia pedacinhos de madeira que garantia ser partes da cruz que o próprio Cristo carregara. Ao chegar a Tuntum, logo fez muitos amigos, conheceu uma linda tuntuense, e encantado pela acolhedora população, radicou-se na cidade tornando-se respeitado comerciante.

Tuntum naqueles tempos não tinha escola, e um governador progressista que acabava de se eleger, considerando isso um absurdo, decidira construir duas escolas na cidade. Uma de alvenaria, no centro, ao lado do restaurante do Arlindo, e a outra na zona rural, feita de tábuas.

Depois de construídas as escolas, um professor fora enviado a Tuntum, e a população local foi em peso recebê-lo na pequena rodoviária.

Rodrigo Oliveira, formado na capital, sentiu-se incomodado com a multidão que lhe aguardava, e com empurrões foi abrindo caminho até o único hotel da cidade, que lhe serviria de morada durante as primeiras semanas.

Os tuntuenses atribuíram o mau humor do recém-chegado a longa viagem em estrada que carecia de asfalto, mas o fato é que o professor despertara certa antipatia em quase todos. Aquela figura estranha, com um bigodinho fino, os óculos grossos equilibrados na ponta do nariz, muito alto e magro, tinha o estranho costume de colocar a língua para fora da boca, movendo-a grotescamente de um lado a outro. Não tardou muito e deram-lhe o apelido de Sucuri.

Ninguém poderia negar que Sucuri era um funcionário dedicado a função que lhe fora confiada. Tentou organizar uma biblioteca com os poucos livros que trouxe da capital, ajeitou as escolas com cadeiras e mesas. Mas não falava com ninguém, o mau humor que mostrara na chegada só ia se agravando, até que discutiu com Seu Mourão, uma discussão tonta, que pareceu doidisse aos olhos dos tuntuenses. Seu Mourão foi lhe cumprimentar como bem manda as normas da boa educação:

-Bum dia, Seu Professô.

-Está errado. – respondeu o Sucuri.

Surpreso com a reação do outro, Seu Mourão, dissimulando sua natureza de homem bruto, tentou justificar-se:

-Qui o dia num tá dus mior inté concordu, mais num é pra tantu.

-O certo é bom dia, Seu PRO-FES-SOR – disse o Sucuri marcando cada sílaba movendo o dedo indicador no ar.

- Mas num foi o qui eu dissi?

-Disse errado. Se quiser falar, tem de falar certo.

Seu Mourão desculpou-se e o caso ficou esquecido por alguns dias, até que o Sucuri se meteu em outra confusão. O Professor estava almoçando no restaurante de Seu Juraci, quando incomodou-se com a falação de Negão e Narigudo.

-Ora, com essa conversa dos senhores vou é morrer de indigestão!

-Deixi dissu, professô, qui nóis tem grandi consideração pelo sinhô.

-Malfeitores! Assassinos! Demônios! Matam a sagrada língua de Camões! Não sabem falar, mais bem parecem criaturas do mato!

Negão e Narigudo olharam-se. Falavam errado? Mas como? Todo mundo em Tuntum sempre falara daquela maneira, e com exceção de Seu Epaminondas, o filósofo da cidade, todos se entendiam perfeitamente bem.

As brigas do Sucuri se tornaram tão frequentes, que Seu Arlindo, dono do restaurante, voluntariou-se a levar o almoço ao hotel, para que o professor pudesse realizar suas refeições sem os incômodos provocados pelos habitantes locais, mas Sucuri encarou a gentileza de Seu Arlindo como uma provocação, e passara a não só almoçar, como também tomar o dejejum, a merenda da tarde, e o jantar no restaurante. O resultado: nenhum tuntuense voltou a pôr os pés no restaurante de Seu Arlindo.

As semanas seguintes foram ainda piores, o professor parecia maluco, andava por toda a cidade, visitava os sítios mais distantes, corrigindo qualquer um que tivesse a audácia de trocar um L por um R, errar uma preposição, empregar o pronome oblíquo de maneira equivocada. Depois dava longas explicações tiradas dos livros amarelados que carregava.

Todos acreditavam que ele estava certo, pois não fora o próprio governo que lhe trouxera da capital para ensinar aos tuntuenses? Não sabiam falar, e duvidavam de que aprenderiam algum dia.

Evitavam a todo custo à presença do Sucuri, e quando viam o homem, permaneciam em silêncio para não despertar a fúria do professor. Depois mantiveram o silêncio mesmo em suas casas, temerosos de que o mestre estaria à espreita, escondido dentro do armário ou embaixo da mesa, pronto a dizer que se quisessem falar, teriam que fazê-lo como os livros ensinam, caso contrário deveriam calar-se.

E Tuntum acabou por calar-se. Fechada em si mesma, tinha como único meio de comunicação um rudimentar código que se constituía em gestos, e os viajantes que passavam pela cidade, pensavam que o povo era muito rude que nem sequer dava as boas vindas aos visitantes, ou que era habitada por surdos-mudos, vítimas da epidemia de meningite. O único que se mostrava contente era o Sucuri, caminhava pela cidade com as mãos para trás, com os ouvidos atentos a qualquer voz humana que imaginasse escutar.

Por durante dez anos não se ouviu gente falando em Tuntum. A escola do centro agora servia de depósito, a rural havia sido tomada pelo mato, porém o professor permanecia inalterável em sua função, agora com a cabeça careca, o bigodinho grisalho, os óculos quase sempre embaçados, a língua adquirira uma coloração roxa. Abandonara a cidade e vivia no mato, implicando que os passarinhos de Tuntum não sabiam cantar corretamente. Justamente quando estava ensinando um Uirapuru a cantar, levou uma bala no meio da testa, e seus miolos espalharam-se sobre o mato. O autor do assassinato fora Celinho, filho de Dona Maria, menino de nove anos, que tinha como principal passatempo meter-se no mato e caçar tudo que fosse vivente que lhe cruzasse o caminho. Confundira o Sucuri com uma raposa.

Com a morte do professor, Tuntum toda se alegrou, seu funeral foi uma festança onde todos falaram e cantaram sem parar, pois havia muito assunto para se colocar em dia.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 10/07/2019
Reeditado em 15/10/2019
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