Saudade de Madeleine


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Os olhos dela brilhando sob a luz do lustre gigante, no salão de baile do Ardosia Inn. Mil estrelas salpicando os olhos quase negros dela, como se o veludo deles estivesse bordado com pequenos brilhantes que, ao movimento, ganhavam cores que ele poderia jurar jamais ter visto.
O corpo dela rodopiando nos braços do pai, vestido de branco esvoaçante. A pele morena dela em contraste com o branco que reluzia. O sorriso de dentes perfeitos, pérolas perfeitas, raras.
Ele olhava. Apenas olhava, como que extasiado, parado à margem da pista onde dançavam tantos pares dos quais apenas um lhe interessava. Ele olhava, maravilhado, aquela vida manifesta no corpo jovem e moreno, cujos cabelos negros, presos com esmero, brilhava e refletia as luzes.
Em seu peito, o coração martelava saudades que ninguém ali, além dele, entenderia. Sua mão segurava com força o cabo de madrepérola da bengala em que precisava se apoiar havia alguns muitos anos. Mas as dores que o incomodavam pelo mesmo período de tempo, talvez mais, naquele momento haviam perdido a intensidade. Tudo porque a via. Estava quase diante dela e talvez não pudesse, ou não ousasse, aproximar-se mais. Talvez não se permitisse. Afinal, como explicaria tamanha fascinação de um velho por uma menina que completava apenas 15 anos naquela noite magnífica?
A música era antiga. Uma valsa que ele e ela haviam dançado algumas vezes ao longo de sua vida juntos. Na época, ela era Madeleine. Sua solar Madeleine. O amor de sua vida. Devia admitir que ele valsava melhor do que o par que dispunha da companhia dela, naquele momento. Formavam, então, um belo par. Quase podia senti-la em seus braços e ambos a girarem pelos salões.
Agora, ele podia notar, ela demonstrava alguns trejeitos conhecidos por ele. O jeito como segurava o ombro do pai, por exemplo. Apesar de suas mãos estarem calçadas por luvas acetinadas e muito brancas, ele podia perceber, àquela distância, os dedos levemente crispados. Ela o fazia porque sentia-se flutuar enquanto valsava, o que a fazia frequentemente sentir uma leve vertigem. Ele poderia apostar que, se perguntasse àquela menina, ela admitiria o mesmo. O corpo tinha a mesma leveza. A alma, muito mais, certamente.
O imenso lustre, com suas dezenas de pequenas lâmpadas continuava a ressaltar os olhos quase negros dela, agora uma menina. Entretanto, tinham uma expressão tão conhecida. Uma alegria tão sua. Uma apaixonante meiguice. Madeleine. O mesmo baixar dos cílios, um pouco mais demorado do que uma piscada. E o sorriso ali insinuado. Uma alegria latente. De alma.
No peito dele, o coração martelava saudades que, naquele momento, alimentavam-se da proximidade de sua amada. Não a tinha por perto havia quase vinte anos. Madeleine se fora contrariando a promessa que fizera de jamais deixá-lo só. Quem poderia cumprir uma promessa como aquela, afinal? Quem poderia saber a hora exata?
Ele ficara. E a solidão fustigara o que havia sido, por cinquenta anos, uma alegria imensa. E o tornara um homem, sem dúvida, menor.
Ele beijara as mãos dela e declarara seu amor pela derradeira vez, numa tarde de sábado cuja beleza solar poderia parecer até mesmo um deboche, não fosse a compreensão de que as portas de o mundo além estavam se abrindo para a sua tão solar Madeleine. Tanto que ao último suspiro dela, pareceu a ele ouvir um pássaro a mais em seu jardim, dado o pequeno alvoroço de gorjeios. E uma brisa o beijo serenamente. Olhou para o relógio e marcou o horário: cinco horas.
A valsa terminou e o par que ele tanto observava seguiu, braços dados, a uma das mesas. Ela sorria. O pai, orgulhoso, também. Conversavam animadamente, enquanto ela a conduzia. Ela sentou-se e pegou um leque, abanando-se um tanto afoita. Foi então que ele notou uma pequena mancha em forma de gota, em seu pescoço. E uma leve tontura o assombrou fazendo com que se apoiasse melhor na bengala.
Uma gota. As mãos dele estavam trêmulas e sua alma parecia querer escapar do corpo. Naquele exato local, no corpo de Madeleine, sua Madeleine, caíra a primeira lágrima dele, assim que sentiu que ela estava se despedindo dele. Uma lágrima de dor. E de amor. Ela abrira os olhos quando sentira a lágrima tocar-lhe a pele do pescoço e conseguira sorrir. Sorrir. Um sorriso de amor. E de dor.
Ele se deu conta de que estava com os olhos fechados e quase chorava. Um velho caducando, imaginariam os outros. Quem se importaria com as emoções de um velho? Mas estava de novo com os olhos bem aberto, sem perdê-la de vista. Sabia, pressentia como se o tivessem dito, que aquela seria a primeira e a última vez que poderia olhar para ela enquanto ela vivesse ali, naquele pequeno corpo moreno, de menina sorridente e evidentemente tão feliz. Porque logo seria a vez dele, então, de seguir adiante, de entrar por aquela porta pela qual sua Madeleine se fora, anos atrás. Logo estaria ele cumprindo a caminhada presente e seguindo rumo ao que ainda não sabia como era e o que encontraria. Enquanto que ela, Madeleine, já estava de novo na nave na qual vivera ao lado dele por tantos anos de luta, lida e amor. Uma vida em que haviam cultivado o melhor de si, pelo menos era nisso que acreditavam. Sempre haviam acreditado. E plantaram hortas e pomares. E tiveram filhos. Dois. Eram hoje bons homens. Eles e a família deles faziam parte dos pomares e hortas que Madeleine e ele haviam plantado.
Ela havia sido uma mãe maravilhosa. Presente. Calorosa. Ele, um pai que trabalhava para merecer aquela família que ela cultivava. Mas, devia admitir, estivera ausente por períodos de tempo que desejara ardentemente repor. O impossível, evidentemente. Não se pode fazer a roda do tempo voltar. Não nós, simples mortais, vestidos com esses pesados emaranhados de ossos, músculos, carne e tripas cobertos pela camada impermeável de pele. Pele que envelhece tanto quanto os demais. Como a dele, enrugada e gasta assim como seus ossos.
Devaneios o levavam novamente a um mundo que ele dividia com Madeleine e, no entanto, ela, naquele momento, não se lembrava mais dele. Não tinha a noção de quem havia sido, nem sequer de que já havia sido outra antes de ser a menina morena encantada, a princesa movida a sorrisos puros, pronta para iniciar uma vida de juventude e riqueza. Dessa vez, longe dele.
Por isso, a saudade lhe doeu mais ainda, tornando-se de repente tão maior do que a alegria de estar próximo a Madeleine que uma lágrima brotou do fundo de seus olhos azuis e transbordou, lenta e morna, rolando mansa pelo seu rosto. Foi quando os olhos dela o alcançaram, como que chamados por um toque de anjo. E, naquele momento, o mesmo anjo deve ter usado o poder de parar a roda do tempo.
Os olhos dela tornaram-se sérios e compenetrados. Quase negros e brilhantes. Aveludados. Mas o que ele via eram os olhos azuis de Madeleine, tão grandes como aqueles, com a mesma expressão rapidamente assustada dado o espanto de encontrar os dele. Reconhecendo-os. Voltando aos olhos dele como se eles fossem, sim, o seu lar.
As luzes do lustre gigante continuam rebrilhando alegria, mas tudo estava se movendo lentamente em torno deles. Qualquer movimento inexistia além do bater de cílios dela. Qualquer som se perdia além das respiração apressada dele, o ritmo que parecia ser compartilhado. E, sem saírem do lugar em que cada um estava, eles, a menina de 15 anos e o homem de quase oitenta, escapavam de seus corpos e se comunicavam.
A menina, coração aflito sem entender por quê, levou as mãos enluvadas ao peito, sem conseguir tirar seus olhos daqueles outros, azuis, tão azuis, assustadoramente amados, surpreendentemente conhecidos. E, por um misterioso acontecimento, nada temia. Apenas deixava-se seguir como que por um caminho invisível sim, porém quase palpável, por meio do qual chegava até aquele senhor, parado ali, de pé, apoiado numa bengala e que a olhava com um amor que ela reconhecia, apesar de jamais ter vivido algo parecido naqueles seus tenros quinze anos.
Por um intervalo de tempo que não se media e jamais poderia ser medido realmente, libertos das impossibilidades, Madeleine e Auguste se tocaram com suas almas e se disseram daquela saudade imensa. E se declararam coisas que não repetiriam com a própria voz, porque não conseguiriam. Apenas eles, pela eternidade, saberiam o que lhes reservara tamanho amor, um amor que reconhecera a ligação entre eles, tão real quanto os dias que amanheciam e anoiteciam neste planeta nave. Eles e os anjos amigos tão apaixonados como eles, pelo amor.
Por uma janela do tempo, infinitesimal momento, ele disse a ela de seu amor e desejou que fosse feliz nesta nova empreitada. Pediu-lhe perdão por qualquer coisa que não lhe tivesse dado. E lhe acariciou a alma como quem toca o ouro mais precioso, ciente de que não haveria de ter, jamais, algo mais seu.
Ela, com aquele sentimento crescendo em seu peito, tão desconhecido em seu corpo, mas tão reconhecido pela sua alma, despediu-se uma vez mais de seu querido Auguste. Seu companheiro eterno, a quem deixara por um momento apenas, pois o que é uma vida para a eternidade? Precisava, ela mesma, cumprir certas questões um pouco antes da volta dele.
Porque souberam, ambos, com uma certeza que foi lavrada pela Criação, que estariam juntos dali uns anos. Seria a continuidade de seu amor, embora em uma outra variação dele.
Promessas não lhe cabiam. Eram ser etéreos ali. E sua porção eterna era a que vibrava. Promessas não alcançam tamanha grandeza.
Os olhos da menina, negros, brilhantes, num repente, um átimo, voltaram a ser os da menina. Madeleine se escondeu nos meandros da nova morada. Restaram um brilho a mais nos olhos de veludo, quase azuis num derradeiro reflexo do imenso lustre, e um bater de cílios lento como asas de um anjo que dizia ‘até breve, meu amor’.
Os ruídos, as vozes, a música, a luz inebriante. Tudo voltou repentinamente a vibrar pelo salão, despertando Auguste do transe do encontro. Assim que seus olhares se afastaram, ele retomou a antiga dor, agora acrescida de certezas e, tomando do bolso um lenço, enxugou a lágrima que ainda pendia em seu rosto enrugado.
Quando virou os calcanhares e caminhou lentamente, apoiando-se na bengala, sua companheira, sentia-se seu peito repleto. De dor, sim, mas de uma alegria imensa, abraçada por uma esperança que crescia, a cada passo dado.
Na mesa, com seus pais e amigos, a menina seguiu pelo baile. No peito, um coração em chamas, batizado pela compreensão de um amor do qual não se esqueceria. Jamais. Ele estaria adormecido pelo tempo necessário. Apenas pelo tempo necessário.
O frio da noite abraçou o velho Auguste. Uma lua miúda em seu quarto crescente já ia alta no céu de inverno. Respirando profundamente, ele olhou pelos vidraças altas através das quais se avistava o interior do salão, onde rodopiavam pares rindo os risos da aurora de suas vidas. Quanto a ele, sorria o sorriso amado, lembrado e guardado. Pelo tempo necessário. Apenas pelo tempo necessário.

Auguste desencarnou menos de um ano depois. Havia ao lado de seu leito quem testemunharia um leve sorriso em seus lábios ao partir.
Além da porta que se abrira, avistou o pai que lhe deixara havia tanto tempo e que trazia consigo o mesmo ar solene, embora mais suave. A verdadeira vida suaviza afetos. Seguiram, mãos dadas, rumo ao mundo ao qual, de fato pertencemos, todos nós.
Sem gritos, quase sem nenhum alvoroço, aquela menina do baile de quinze anos, cinco anos depois deu à luz, em um hospital renomado, cercada pelo carinho da família e pelo amor verdadeiro de um bom marido.
Dentro dela, um amor que apenas crescera à medida que seu ventre crescia também. Aquele pequeno ser a tornava repleta de um sentimento novo e ao mesmo tempo, antigo conhecido seu.
Um menino nasceu. E quando seus olhos se encontraram, ambos quase negros, brilhantes, aveludados olhos, firmou-se mais uma vez o elo poderoso autorizado por Deus.
O pequeno mamou pela primeira vez e, satisfeito, adormeceu no peito da mãe. Um novo tipo de amor a ser compartilhado por ambos.
O narizinho do pequeno Angus, nome que ela acalentara em pensamento que seria o do seu filho, encostou na marca de nascença que havia no pescoço da mãe. A marca que um dia fora lágrima sua. Uma lágrima de dor. E de amor.


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[imagem: gertrud k.]