Canto mudo
Foi num dia desses que percebi que nem todo mundo canta.
Naquela hora foi uma descoberta incrível porque até então eu cantava, Maria cantava na pia, Jucélia cantava na beirada do fogão. O rádio cantava enquanto Joana acompanhava com sua vassoura-fone. Paulo também cantava limpando a rua, recolhendo o lixo. E até o caminhão cantava no trânsito com Maneco dentro cantarolando a modinha.
A rua toda era uma cantoria e tinha mais por aí, nas praças, no trabalho, no restaurante lotado na hora do almoço. O garçom guase dançava a valsa da sua cabeça e eu vi no rosto dele que mesmo mudo ele também cantava.
Era tanta música que não se podia ficar sem escutá-la, mesmo que quisesse.
E foi numa tarde quente de terça-feira. E só podia ser numa terça, porque a segunda nem mesmo ao sol se abre. Que as 13 horas eu vi uma mulher gorda. Ela não sorria, também não tinha cara de choro; tinha uma expressão séria. Não era velha, mas também não parecia nova. Não posso afirmar que tivesse uma face definida, se tinha não revelava, deixava escondida embaixo daquele pó preto da São Bento. Ela parecia pesada e encontrava-se sentada ali respirando morta e imóvel. Havia se assentado entre a porta grande de um prédio velho e a parede fria de lata de uma banca de jornal.
Vi a mulher sem vida por dias. Ela nunca se movia, sempre ali no mesmo local, como se nunca tivesse saído de lá; não se movia, não devia sentir vontades; provavelmente seu organismo nem funcionava, talvez apenas os pulmões. Eu vi que nem todo mundo canta.
Acho que ela tinha um nó na cara que nunca mudava e não expressava o mínimo sinal de vida. Não radiava, absorvia luz. Era opaca. Uma mancha no chão e na parede porque era larga e grande. Uma mancha com profundidade e relevo. Tive vontade de levantá-la, mas a vontade passava quando me aproximava. Ela estava absorvendo a minha vontade de cantar e eu tinha muita pra ela. Tive medo de afogá-la.
Um dia a escutei. Emanou som do canto dela, mas não era um canto. Ela gemia. Seu gemido me deu um tapa na cara e eu que já passava da sua linha dei dois passos em sua direção para confrontá-la. Seus olhos negros, fundos e remelentos saltaram da face quando lhe estendi a mão. Dava pra ver nos olhos dela que ela movia o braço e seus flácidos músculos doíam, sua mão suja apertava a minha e ela sorria, mas isso só nos olhos, pois todo o resto continuava imóvel.
Fiquei ali por dois minutos talvez; saí quando minhas coxas arderam por estar agaixado.
Naquele dia não senti canto algum dentro de mim, nem vontade de cantar, nem notei som nenhum no ambiente. O mundo estava mudo, a mulher absorvera minha audição. Na cabeça não consegui processar nada, só a imagem fosca daqueles olhos erguendo o corpo todo sem movimento.