Requiem para A. W.
Não existem balas perdidas. Há um número preciso de tiros sem o qual a guerra não se realiza plenamente. A este número, imensurável porém limitado e apenas conhecido pelo contador sobre-humano, corresponde um número proporcional de vítimas.
A 15 de setembro de 1945, faltava que uma bala fosse disparada para completar a ação total da guerra. Esta bala estava na arma de um açougueiro norte-americano, soldado ocasional. À bala faltava-lhe a vítima. A guerra havia acabado, portanto a vítima deveria ir ao encontro da bala que esperava a vítima. Nem esta nem o soldado conheciam seu desígnio, porém, estavam vinculados a um ato que completaria o ritual.
Era necessário que o atirador e o alvo ignorassem a identidade do outro. O enredo exigia que a vítima fosse um civil para evitar qualquer noção de rivalidade. A ordem era que nenhum interesse pessoal interferisse no cumprimento da cerimônia. Somente assim o fato se revelaria ato não humano, circunstância pura.
O músico sai depois do jantar. Na outra calçada um vulto - sombra dentro das sombras, e entre os dois o largo vão da rua - pronuncia algumas palavras em inglês, que o austríaco, provavelmente, não compreende. Com um gesto familiar para aqueles que o conhecem, o civil leva a mão ao bolso interno do paletó à procura de um charuto.
Então ouve-se o tiro. Único no silêncio da noite, e outra vez o silêncio. Este será o fortíssimo invertido do artista, seu epitáfio.
Anos mais tarde o soldado morrerá minado pelo álcool.
Aquele eco da guerra, quando todos os estrondos se haviam esgotado, procurava um ouvido capaz de dar-lhe significação? O certo é que o silêncio não deveria ser o mesmo depois deste disparo. Agora seria um vazio povoado de ausencias, a moldura de sutilíssimos sons, quase nada, que não mais seriam modulados.
Não fosse a vítima Anton Webern e o tiro passaria despercebido. E não teríamos a revelação do mecanismo do ritual, sem que por isso pretendamos compreender-lhe a razão. Esta continuará acaçapada ´por trás do acaso, da coincidência, da fatalidade, do azar, do malentendido.
Talvez, no momento do disparo, as funções do soldado e de Anton Webern foram trocadas, sem que isto alterasse a ação nem as identidades das personagens: uma oferenda, Baal, uma bala. Talvez os dois homens fossem meros suportes, acidentes no tempo e no espaço. No entanto, ambos foram necessários para consumar o sacrifício à deidade corporificada no projétil.