Cifrado
O quarto estava largado - tinha mesmo muita coisa abandonada.
A gente andava - fazia um tempo - tentando ordenar o amontoado e parecia que não havia mais espaço. O espaço era limitado, a gente sabia disso quando aceitou a casa, mas desde o primeiro dia as paredes eram mutantes - mutações gostosas.
Gostosa a vida naquele pequeno espaço iluminado por lâmpadas fracas e levemente amareladas. Deitado em pedaços gigantes de almofadas, perto do chão - o local mais seguro pra quem está de mudança.
Chão de repente é tudo aquilo que se precisa em tempos de arrumação - novos rumos. A gente calcula muita coisa; coisa louca essa de viver fazendo conta - contar moeda, contar dias, contar palavras - e eu que já contei segundos - e por meses; será loucura essa coisa de novos rumos?! Loucura gostosa essa de dormir no meio da mudança; só dá medo de acordar e ver as paredes longe demais, diferentes demais daquilo que havia antes de apagar a luz. É diferente não ter certeza da posição dos cômodos - a diferença faz parte de tudo que tem dois - mais de um é necessariamente diferente e um só é tão sem graça. Uma cadeira só tinha graça antigamente.
Há um tempo o que é antigo foi novidade escandalosa; casa nova é paixão em noite de gala, com vinho e frutas frescas, frutas frias - uvas.
Houve cores vibrantes nessas paredes espaçosas - folgadas realmentes. Andando livremente entre corredores apagados - me lembro, havia cores vibrantes por toda parte, dava pra ver até no escuro.
O escuro é a delícia dos apaixonados e a meia-luz sua revelação mais calorosa. Luz de meia-hora a olhos fechados; olhos de horas embreagados - a bebedeira de risos.
Esse quarto que sobrou concentra tudo. Tudo empilhado - peça sobre peça - às vezes eu gosto.
Curioso o sabor do toque derradeiro, aquele que desempilha; curioso sabor do mergulho - que também espalha. O toque - afastamento; o salto - entrega. Coisa louca essa de mudar o efeito da causa só com o poder do verbo.