Debaixo do pó
Olhando a porta fechada eu me fechava sentado. Estavam ali na sala o sofá amassado, a porta fechada, a tv calada, uma mesinha de centro imóvel e empoeirada e eu amassado, fechado, calado, imóvel e ligeiramente empoeirado. Tudo bem, ligeiramente é pouco. Eu estava mesmo precisando de uma faxina, de uma reforma completa. Ou mesmo da faxineira, quem sabe?! Desde que me movesse e limpasse estaria bom! Precisava de um cutucão. Daqueles bem fortes e doloridos no braço.
Tenho um círculo roxo estranho aqui no braço. O sofá está realmente me amassando. Coisa estranha essa de a gente só sentir dor quando se dá conta. Deve estar aí faz tempo, só não tinha visto. Tenho observado muito aquela porta; fechada, insiste em não mudar de forma, de posição, em não me trazer nada. Tenho observado muito aquela porta; Tenho observado muito aquela morta; Tenho observado muito aquela porra... Se alguém aqui dentro falasse comigo... a tv às vezes fala; nem sempre fala bem, comete infindos erros de português, mas tá aí falando pela vida; tem gente que com ou sem erros pára; já parou ou vai parar; fica assim parado toda vida. Queria achar alguém assim na rua e dizer-lhe boas verdades; mal é que gente assim não sai de casa, fica largado reclamando de móveis velhos; pega até mania... mania de não fazer nada, de falar sozinho em pensamento, de em pensamento reparar em coisa errada, de errar tudo por dentro, de não fazer nada por fora e nunca perceber a si próprio em suas observações criticadas. Coisa estranha essa de a gente só sentir dor quando se dá conta. Coisa estranha essa de pensar em gente morta; porque gente assim, se não morreu, está caminhando pra essa ponte.
Tenho estado muito empoeirado ultimamente. A poeira deve estar me camuflando aqui debaixo. Vai ver já nublou meus olhos, vai ver já até entrou alguém aqui e eu não percebi por causa da sujeira; também não perceberam por causa dessa minha propriedade nova de ficar parado, essa aparência inerte de sofá. Acho que essa minha lentidão é mania de seriado de tv ou eu devo ter assistido muita novela. Vai ver fui contaminado pela repetitividade. Coisa estranha essa de a gente só sentir dor quando se dá conta. Coisa estranha.