Memórias Póstumas de um Jovem Escritor
I
Desde cedo, sinto esta voz que me guia, que me eleva e me faz entrar em sintonia com algo mais aprimorado e dotado de certos entendimentos. A moeda que é jogada em minhas mãos é tão antiga quanto o chão que estou pisando, e o valor não existe mais nela, mas em seu brilho permanece seu encanto.
Como dizer muito ao sentir tão pouco, ao meditar no mergulho de um jovem, emergindo das águas salgadas, com a pele quase dourada e os olhos refletindo o calor de uma vida, experiência tão pouco vivida. De um tempo presente e longínquo, vivendo entre dois momentos distintos.
Caminhei com passos presentes, sentindo o sol iluminando minha mente e a lua de longe com seu encanto imponente. Deparei-me com ligamentos, observei-me sem ferimentos, mas diante de novas sensações, fiz-me pequeno ao redigir as notas do meu coração, em contraste com o novo; o velho observa por onde sopra o vento de agosto.
Dirijo-me com passos constantes debaixo de um sol tão forte, ao ver as aves riscando os lados do céu e os cães inocentes se perderem ao desembarcarem neste solo tão acre de um rio já tão distante, mas que pulsa suas águas na corrente invisível por onde transitam vagamente os homens.
Observo-me ir e voltar e no mesmo lugar encontrar a diferença e semelhança do que nos move, do que nos ensina e do que nos impulsiona. A coerência dos atos com as palavras, do sentir e absorver, do filtrar e se envolver. É visível na alma a mortalidade do ser. Sendo mais ao se tornar melhor para si mesma, reconhecendo sua casca, mas não vendo no corpo sua real beleza.
Porque todo sofrimento provém da natureza; da condição de vida existente, desde o levantar-se ao sentar-se, ao peregrinar pelas ondas emocionais da incerteza, em um mundo dual onde vemos em nós os lados iguais e os cortes feitos sem delicadeza, pois reverbera em você a consciência de um Todo, de um ponto dentro do peito, expandindo-se e contraindo-se no seio do Cosmos, na gota de orvalho da Mãe Natureza.
E se minhas memórias lhe trazem firmeza, segure com força a caneta e escreva no papel da tua carne a cura de todos os seus males e escreva tudo com plena certeza, com a mansidão de uma ovelha e os olhos noturnos da coruja que vigia os dois lados e os dois mundos. Prestando atenção, concentrando-se na essência de um Todo que lhe retifica, ilumina e unifica e te faz vomitar o veneno e os enganos da falsa medicina.
II
Dois lados iguais e diferentes em seus lados opostos, em certa distância improvável, amigo da amabilidade do espírito, em uma noite de cabelos grisalhos e um leve cheiro amadeirado. Sinto profundamente o toque das mãos avermelhadas que, sobre o meu coração, exercem o árduo trabalho de avivamento da deidade afastada e sabiamente camuflada.
O som dos insetos das matas no toque leve de dois sentidos opostos que se encontram em uma mesma encruzilhada. A terra barrosa que está por cima da decomposição da minha carne eleva o ambiente e dá ao recinto a tranquilidade. Quem passa por aqui, sensível ao que vê, aberto ao que sente, presencia o milagre oponente, no desperto estado de vigília da mente.
Uma vez que não me notaram em vida, balbuciam mentiras e, ao cuspir prontamente o gosto amargo da ferrugem que corrompe o tecido, bloqueiam a imersão do surgimento de um Cristo que sobre as águas da consciência pura, caminha com os pés limpos, multiplicando o pão das boas ações e alimentando a multidão cética com mais esta nobre realização.
Então, aos poucos me levantarei e em seu ouvido, cantarei que o tempo veio e já passou, e quando vier novamente virá com muito amor. É preciso estar atento, é preciso viver por dentro para estar firme na alvorada do esplendor, cultivando todo o ensinamento, porque ficaremos na escuridão, e só a luz que há em ti iluminará teu próprio caminho para a grande meta rumo à perfeição.
No silêncio que acompanha o meu dia, no despertar dos pássaros anunciando a bela primazia, assim jaz o meu corpo, todos os encantos a nutrir o solo vivo com gotas de chuva caindo entre as folhas e raios de sol penetrando entre as moitas. E você caminha com passos demorados ao observar o que a morte trouxe, ao constatar o que a vida deixou. Não estarei aqui o tempo todo, mas, no tempo certo em que me invocares, lhe mostrarei os acordes do som dos instrumentos superiores.
Para ressoar em tua alma a canção dos seis degraus acima e dos sete degraus abaixo, apreciando a morte e seu tempero, apreciando a vida e seus festejos, porque deves de tudo provar para que saibas o melhor selecionar. A apuração do seu próprio gosto, da elevação e maturação, do discernimento e da alegria , enchendo gota por gota o corpo da Sabedoria, frente ao sentimento de nostalgia que clareia tuas escolhas e pacífica tua vida.
Compartilho contigo minhas memórias, para que te aprumes quando chegar a hora. Porque já fui cedo ao vencer junto à vida, ao navegar calmamente no mar tempestuoso. No agito indeciso fiz minhas escolhas, plantando minhas sementes, regando a atividade constante da paz reconfortante que se manifesta no fim da tarde, que se sente em toda brevidade do tempo quando é nutrido com o certo conhecimento.
III
Ao amanhecer do dia, vi o sinal entre as nuvens do céu acinzentado, sobre a grama deixando o solo preservado. Os erros cometidos em vida, na esperança da mudança que não tarda, num sentimento de segurança rejeitada. Fiz o que fiz existindo com este corpo presente, entre a incerteza e a certeza, vendo dois reinos desmancharem por inteiro e a semente germinando pelas leis aplicáveis do universo inquestionável.
E se eu tiver morrido cedo, nunca tendo visto meus escritos em papel impresso, nunca tendo contado os pulos dos carneiros. Sem observar com plena atenção, sem jejuar com a devida intenção, sem perdoar a mim mesmo, sarando meu coração. Vendo a flor morrer e nascer, vendo o Sol aos poucos de mim desaparecer. E se minha vida foi vivida em vão, alimentando só a mim mesmo e não aos que me cercam, e não os meus irmãos.
Agora as minhocas me comem por inteiro, agora o solo me devora até não sobrar mais o tempero. Até que seja inviável voltar, questionável a insistir sobre a saída, não realizando a despedida e sendo jogado de lado a lado pelo vento dos angustiados e escorrendo nas lágrimas dos desprezados… Para onde minha alma caminha ao se deparar com o sofrimento alheio em cada esquina?
Se sou eu o fim de mim mesmo, se sou eu o caminho e a pedra com a intenção do tropeço. Me compadecendo com o infortúnio ambiente que vivi, com a terra seca, a observar a árvore centenária, ao ver as mudas do solo árido morrerem com o jarro d’água ao seu lado. Padecendo aos poucos e com tanta sede, se esquecem de mim e se perdem no balanço da rede.
Cuspo o barro verde que sai da minha boca, cuspo o mel e o leite que engoli em demasia. Sofro e me reconforto, choro e me aprimoro. Estou ficando azul e me coloco sem um corpo, na lembrança de que estava morto, no reconfortante gosto de partir ainda moço. Porque já morri mais de uma vez, como o tempo em desenvolvimento, com as lembranças da brevidade de cada momento.
Não posso ficar sem a certeza de missão cumprida, nem vagando como espírito e nem encarnado e redimido. Senti o vazio de existir estando invisível, de estacionar debaixo da árvore em contemplação aos transeuntes, constatando o gosto amargo do café gelado e a fumaça que parece neblina, poluindo o ambiente e acinzentando o tom do que foi a minha vida.
Talvez você não me encontre, talvez eu não mais retorne, mesmo frente aos pedidos e oferendas. Porque fui sentindo até não sentir mais, fui me entupindo até me anestesiar, até secar no solo árido do calor e frio do deserto, pois cortaram o meu laço e eu por completo fui afastado. Não vendo mais razões para ficar, vejo as plantas morrerem sem a intenção de querer continuar. As formigas seguem em seu formigueiro e, debaixo do solo escuro, vejo as raízes, mas de cima não vejo os seus frutos.