Quanta comodidade!
Se eu sei quem sou, faço aquilo que quero sem dar satisfações.
Quanta comodidade!
Se não sei quem sou, pequenos testes, simples, com perguntas banais, me dizem com perfeição quem eu sou. Se estou triste, ligo para alguém, quebro alguma coisa, maltrato alguém que considero inferior ou simplesmente me trancafio no quarto. Se estou feliz, chamo os amigos, discutimos sobre a vida dos outros, sobre coisas inúteis, mas que sondam a existência e a consistência de nossos seres. Se somos ‘burros’, desprovidos de esperteza gananciosa e egoísta, somos usados, para o bem do mundo, claro. Se somos astutos, espertos e sem caráter, usamos os outros para o bem próprio, de consciência tranqüila, afinal são ‘burros’ mesmo. Se estamos vivos, não vivemos, fazemos de conta, que é muito melhor e não pesa tanto na consciência. Se estamos morrendo, queremos viver, mas talvez já seja um pouco tarde para assim se fazer. Se estamos conscientes, sabemos de uma luta que não se pode vencer. Se estamos dormentes, assim estamos porque é o melhor modo de viver, ignorando a dor, o sofrimento e a injustiça. Se somos alguém consciente, nos sentimos bem e mudamos aqueles ao nosso redor; se não, fingimos ser e mudamos as pessoas ao nosso redor; se somos as pessoas ao redor, desconfiamos, mas nos submetemos, pois não sabemos o que fazer para viver, vivemos como os outros nos dizem para fazer. Se estamos aqui, é porque aqui estamos e não poderíamos estar em outro lugar. Se aqui estamos, tão desajustados, perdidos, é porque muitos vieram antes e nos tiraram do caminho. Se somos seres vivos, como seres vivos não vivemos. Se não seres vivos, o que somos? Se o caminho da vida é tortuoso, é porque temos muito o que crescer. Mas se temos muito o que crescer, porque tentamos ao máximo assim fazer?
Ah, claro, a comodidade! Quanta comodidade!
As pessoas me dizem aquilo que preciso saber. Elas me dizem aquilo que preciso fazer. Elas me dizem quando fazer. A mim, cabe apenas decidir fazer ou não. Talvez nem isso. Livros nos dizem o que é certo e o que é errado, baseado em pesquisas muito bem elaboradas, com centenas de pessoas que não são nós, mas que afirmam terem comportamento similar, mesmo nunca as tendo realmente conhecido. Se somos generalizados, por que precisamos de identidade? Se destruímos o mundo e aqui estamos para isso fazer, por que o fazemos de maneira discreta? A quem queremos enganar senão a nós mesmos?
Ah, claro. Só pode ser. Quanta comodidade!
Só vejo injustiça quando eu quero ver. Só vejo algo errado onde eu quero ver. Não há algo de errado comigo. Há algo de errado com o mundo. Só pode ser isso.