CONTEMPLANDO DO CALVARIO
Nunca acreditei que um dia eu estaria subindo essa montanha. Uns dizem que é mística, outros que ela é enigmática e também dos mais céticos, dizem que é apenas uma montanha como outra qualquer, um acidente geográfico. Eu estava no meio termo, mas confesso que estava radiante por iniciar a subida. Sabia que em toda caminhada por lugares desconhecidos, sempre surgem algumas novidades, nem todas as pedras são iguais nos mais diversos caminhos. Sentia ate uma mágica no ar.
Quando cheguei à base da montanha, contemplei-a na sua imponência. Era bem alta, mas não oferecia alto risco. Não era necessário ser um alpinista profissional para subir, nem apetrechos para escalada. Mas certo preparo físico e alguns metros de corda já eram suficientes para a escalada. Levava na mochila, água, chocolate, algumas frutas, um par de luvas, uma faca, maquina fotográfica, caderno de anotações, caneta e um livro pra ler. Como o tempo estava ótimo nesse começo de outono resolvi levar um saco de dormir, pois tinha a intenção de passar a noite lá no alto, para admirar a paisagem durante a noite, de todo aquele vale, onde se podiam avistar muitas cidades ao longe.
A montanha tinha cerca de 2000m de altitude, muita vegetação, pedras pequenas.
Iniciei a caminhada bem devagar. Não havia necessidade de bater recorde, nem era essa a minha intenção. Queria desfrutar ao máximo cada metro percorrido. Prestar atenção nas plantas e nas flores, nos pássaros e nos animais que faziam da sua casa aquela montanha. Sentia-me como um menino. Ia-me sentindo um conquistador em cada passo dado. Foi uma decisão minha ir sozinho; bem que alguns amigos queriam vir juntos, mas achei que seria mais interessante ir só. Assim pararia quando desse vontade. Queria me sentir totalmente livre. É claro que não dispensei algumas das maravilhas das invenções do homem. Trouxe o celular sim, mas deixei-o desligado. Queria sentir silencio total. Como ela já tinha sido escalada por outros, percebiam-se algumas trilhas, estacas colocadas de forma estratégica para auxiliar na subida.
E lá fui eu. Às vezes assoviando, cantando qualquer tipo de musica que viesse a minha mente, dando saltos de uma pedra a outra. Como estava feliz. Devia ter feito essa escalada há muito mais tempo. Já pensava numa próxima subida. Já havia subido uns 500 m. e percebi que já eram 2 horas da tarde. Sentei-me e fiquei olhando o vale que se abria. Como era lindo aquele lugar. Que paz trazia aquele visão. Podiam-se ver carros, pessoas, animais. Mas o silencio era total. Estava numa posição que podia ver tudo e ninguém me via. Que sensação maravilhosa. Já tinha tirado varias fotos, feito algumas anotações, tinha comido uma maçã e resolvi iniciar a caminhada. Pela hora já sabia que teria que passar a noite e para chegar ao cume só no dia seguinte. Isso não me abalava, pois era essa a minha intenção. Também o cansaço ia tomando conta. Parecia que o peso da mochila havia dobrado. Assim, fui subindo mais devagar. O sol suave não me castigava e o estoque de água era suficiente, havia trazido 3 litros. Caminhei mais 3 horas, mas o espaço percorrido foi menor. Achei melhor parar aquele dia. Então procurei um lugar adequado para me arrumar e ficar o resto do dia e dormir, pois a noite já dava cumprimentos à tarde linda que se despedia lentamente.
Preparei o saco de dormir, limpei ao redor, bati com uma pequena vara no chão para afugentar alguns animais pequenos que podiam estar por ali e também arrumei uns gravetos para fazer uma pequena fogueira, tomando o devido cuidado para que o fogo não se transformasse num incêndio descontrolado.
E assim fiquei olhando o por do sol, que se escondia lentamente. Podia notar que na cidade mais próxima, as sombras da noite já eram percebidas e aqui na montanha ela ainda não havia chegado. De repente chegou aos meus ouvidos uma musica sendo assoviada. Rapidamente levantei-me e segurando a faca fiquei em posição de alerta. Quem poderia ser? Fiquei procurando para ver se descobria de onde vinha aquele som. Confesso que senti um pouco de medo. Com a faca na mão e a outra dentro da jaqueta como se estivesse segurando um revolver. Fiquei nessa expectativa uns 5 minutos, quando uma voz soou atrás de mim.
- Pode ficar calmo meu filho, sou um velho que mora na montanha, não ofereço perigo algum. Ao lado dele havia um cão da raça rottweiler que me olhava direto nos olhos, só esperando um comando do seu dono, se eu fosse uma ameaça. Fiquei olhando para aquele senhor de mais ou menos uns 60 anos, mas era bem robusto, mais alto que eu. Foi ele que novamente falou.
- Você está perdido? Ta machucado? Precisa de alguma ajuda?
Gaguejei e disse que não. Estava apenas subindo a montanha e que iria passar a noite por ali. Perguntei-lhe se ele fazia o mesmo e lembrei-me que havia dito que morava na montanha. Como poderia alguém morar naquele lugar? O senhor tem casa aqui? Ele não me respondeu, mas disse que o cachorro iria cheirar-me para acostumar-se comigo. – Pode abaixar a faca, senão ele pensa que você é uma ameaça para ele e pode atacá-lo. Esperei alguns segundos e resolvi guardar a arma. Assim que o cão sentiu que eu não oferecia perigo aproximou-se, cheirou e enfiou a cabeça por entre minhas pernas. Senti um arrepio nesse momento.
Depois dessa cerimônia, o cachorro foi para junto do velho e sentou junto a sua perna esquerda. - Ele gostou de você, senão não teria passado por entre suas pernas. Esse é o sinal que ele me passa. Fiquei imaginando o que o cão teria feito se não tivesse gostado de mim. Agora mais tranqüilo, convidei-o para sentar-se ao meu lado. Ele ficou alguns minutos e me convidou para ir ate a pequena cabana que ele tinha construído uns metros acima e que eu estaria mais seguro. Juntei minhas coisas e fui seguindo-o.
Ele na frente assovia canções antigas, o cachorro dava saltos, brincava com ele, numa perfeita harmonia. O senhor não olhava para trás e nem falava nada. Era o cachorro que às vezes olhava para mim e continuavam naquela brincadeira. Acho que o cachorro era o olho daquele senhor. Andamos mais ou menos uns 40 minutos. Era uma cabana de madeira. Tinha só um cômodo, mas bem feita. Na frente tinha um canteiro com verduras diversas, legumes, alguns pés de arvores frutíferas e uma caixa dagua a qual recebia água por um condutor que vinha do alto. Como poderia haver água naquela altura? Fui só eu pensar ele me disse: - Não me pergunte como, mas eu achei uma pequena mina e encanei a água ate aqui. Sorri-lhe discretamente e entrei na cabana. Tinha um fogão a lenha, uma mesa pequena, duas cadeiras, utensílios domésticos, alimentos e pasmem, um telefone celular e um radio. Creio que ele tenha captado meu espanto e foi logo dizendo com um sorriso. – Posso morar na montanha, nessa cabana de índio, mas isso não me impede de ter alguma comodidade dos tempos modernos. Agora era eu quem ria da resposta. Ele continuou: sou aposentado pelo INSS, a cada 15 dias eu vou até a cidade, faço compras, recebo meu pagamento. Eu gosto de gente, gosto de às vezes participar do movimento do centro da cidade. Não sou um velho ranzinza, cheio de medos, de mal com a vida. Eu adoro as pessoas, vim morar aqui por opção. Aqui tem muita paz, gosto de ficar mais perto das estrelas e se você soubesse como essa montanha tem movimento... É gente que se aventuram às vezes despreparada, outros fugindo por muitos motivos e eu me sinto muito bem quando posso ajuda-las e também tenho mais sossego para ler os livros que gosto e poder escrever alguma coisa sobre tudo. Ele abriu um velho baú cheio de livros e vários cadernos preenchidos por ele: eram poesias, contos, crônicas. Era a sua vida, sua visão sobre o mundo. Achei bonito o trabalho dele. Enquanto eu abria seus livros, ele começou a fazer um fogo e preparar uma comida. Logo anoiteceu e ele acendeu um lampião moderno, que logo iluminou todo aquele cômodo. Conversava sobre tudo e de uma maneira tranqüila, lúcida, sem nenhuma amargura. Fiquei maravilhado com aquele senhor. O seu cão ficava sentado no seu canto a nos observar como se participasse da conversa sem dizer nada. Ele fez uma sopa revigorante, que rapidamente saboreei com gosto e me deu um novo animo, pois me sentia cansado.
Fomos para fora e ele colocou duas cadeiras, daquelas de praia, para contemplarmos as estrelas, como ele sugestionou. Ficamos sentados num profundo silencio. Nunca tinha experimentado essa sensação, essa oportunidade de ficar assim. Viam-se as luzes da cidade como se fossem estrelas, mas não tão bonitas como as que ficavam sobre nossas cabeças. Longe do brilho artificial das lâmpadas, aqui em cima as estrelas eram muito mais cintilantes. Dava-se a impressão que podíamos tocá-las, sentir a pulsação de cada uma. Aquela estava sendo uma noite mágica, diferente. Imaginei eu morando nas mesmas condições daquele senhor, que eu nem sabia o seu nome e ele também não perguntou o meu. Mas sentia por ele uma antiga amizade. Olhei para ele e seus olhos brilhavam. Era como se fosse à primeira noite que ele passava na montanha. Tinha uma serenidade no rosto, uma tranqüilidade, uma segurança que há tempos não percebia em ninguém, nem mesmo em mim. Eu vivia a agitação da cidade, o corre-corre de todo dia. No transito louco e barulhento. Na empresa com todas aquelas maquinas funcionando, chefes a beira de um ataque de nervos, com a produção atrasada. Era o caos. Ele virou-se para mim e novamente como se adivinhasse meus pensamentos me falou: - Como é bom deixar toda aquela loucura fora de nós! Você não concorda? Dei um sorriso pequeno e balancei a cabeça afirmando. Eu me sentia mais leve, mais novo. Mesmo naquela escuridão podia-se olhar mais longe e ao mesmo tempo sentia-se próximo de tudo. Pensei na minha família, no meu emprego, nos amigos, nas ruas da cidade. Sentia-me como um homem invisível que a tudo observava sem saberem que eu estava ali. Que sensação esquisita e gostosa a um só tempo. O silencio foi quebrado quando ele me perguntou: - O que você veio buscar aqui na montanha? Aquela pergunta me pegou desprevenido. Todo embaraçado lhe respondi:
- Não sei! Tive vontade de vir ate aqui, me preparei e vim. Queria sentir esse silencio e estou sentindo. Mas agora nesse instante não sei o que vim procurar. – E o senhor, o que veio buscar? Ele, continuando olhar pra frente, me falou de maneira bem segura.
- Isso! Fez um gesto com as mãos como que querendo me mostrar tudo que estava a nossa frente. E novamente enfatizou: - Tudo isso! Há oito anos eu subi essa montanha, igual a você, procurando um pouco de paz, sem saber o que procurava, e encontrei tudo de que precisava. Essa montanha é mágica menino! Dizia ele, com uma confiança tão grande. Deu uma respiração profunda, como se quisesse absorver todo o universo e lentamente soltou todo aquele ar para devolver o que tinha tirado, como se tivesse ficado um vazio a sua frente. Ele pousou sua mão sobre meu braço e me falou: - Esta é a sua noite, aproveite! E pense no exato momento, quando Jesus estava na cruz e ele olhou do alto da montanha, os seus parentes, seus amigos, seus supostos inimigos, seus carrascos. – Pense nisso, talvez possa te ajudar no que você esta procurando. A noite é sua, fique com ela e talvez você possa ganhar uma estrela, já que existem bilhões e com certeza uma delas te pertença. – Fique aqui sentado. Eu vou me deitar.
Levantou, chamou o cachorro e entrou na cabana.
Fiquei ali na cadeira, sentindo o peso do convite e pensando como sentir o que Jesus sentiu naqueles instantes tão doloridos, tão cruciais para Ele e para a humanidade.
Para o meu espanto vi uma estrela vir ao meu encontro. Era enorme, radiante, tinha uma luz forte, mas que não cegava.
Ficou ali, há poucos metros de mim. Imediatamente toda a montanha se iluminou. Tentei levantar e sair correndo, mas alguma força me segurou. Tentei gritar, mas meu grito foi sufocado. Era tamanha beleza, tanta luz, tanta claridade leve. Imagino a minha cara de espanto e também de medo, porem, em pouco tempo só restava uma sensação agradável. Como num passe de mágica, fui transportado ao lugar e dia da crucificação. Estava ao lado de três cruzes e seus crucificados. Novamente me senti como um homem invisível. Tudo via e ninguém conseguia me ver. Olhei para as cruzes na vontade de reconhecer cada um deles. Na cruz central vi um homem semi-nú, com sangue escorrendo pelo corpo, os lábios partidos pela falta de água, os olhos cerrados pela dor. Olhei as pessoas que estavam há alguns metros dele. Em suas faces via-se o sorriso, a satisfação, a dor, o choro, a indignação. Mas não eram pessoas adultas, eram crianças. Sim, eram crianças! Crianças que faziam daquele ritual uma brincadeira de criança. Confesso que senti ódio delas, vontade de bater, vontade de pegar uma espada e se fosse preciso matar algumas delas. Como podiam ser tão más. Aquilo não era uma brincadeira, como podiam ser tão macabras? O sentimento de revolta foi crescendo dentro de mim, e me sentia tão mal com aquilo. Uma ânsia, um nojo, vontade de vomitar. Era o retrato do inferno a minha frente. Quando peguei uma lança e fui partindo para cima daquelas crianças malvadas, escutei um “psiuu” e me virei para ver de onde partira o chamado. Era daquele que estava na cruz central. Mesmo naquela situação de sofrimento, abriu os olhos e me disse:
- Não faça isso! São apenas crianças, não sabem o que fazem. Estão crescendo, estão aprendendo. Olhe para você. És também uma criança.
A lança de repente ficou pesada em minhas mãos e deixei-a cair ao solo.
O silencio imediatamente tomou conta daquele lugar. A algazarra, o choro, as lamentações findaram. Todos levantaram os olhos para Aquele que falava. Ele, olhando para o céu e como se orasse disse:
- Perdoa meu Pai, eles não sabem o que fazem.
Quando as lagrimas brotaram nos meus olhos, eu voltei para a montanha, para a cadeira. A estrela ainda estava a minha frente. Radiante, bela, fulgurante. Ficou ali como se me observasse, tomando conta de mim como um irmão maior, me trazendo conforto, paz, serenidade, certeza a minha procura naquela noite.
Ela foi diminuindo de tamanho e entrou em mim. Não houve dor. Senti como se fosse um balsamo que alivia ferimentos, suaviza sentimentos, apazigua coração.
Levantei-me e entrei na cabana. O lampião estava com uma luz bem fraca. Havia um colchonete já preparado no chão para mim. Silenciosamente deitei. Quando ouvi o senhor me perguntar:
- Você ganhou uma estrela?
- Sim! Respondi confiante. – Ganhei!
Dormi...
Di Camargo 04/12/2007