Por Linhas Tortas
Sempre escrevi febrilmente muitas coisas multitemáticas durante os anos da minha vida, dominado por uma espécie de força criativa ancestral, atávica, pletora de ricos conteúdos. Não sabia qual a utilidade do que escrevia, para que servia, o que faria com todo aquele universo pictórico de papéis. Certa vez, movido por um incoercível espírito rebelde, decidi instaurar um motim contra as potências criativas e me recusei a escrever. Saí do conceito para a vida fáctica, mergulhei na imanência, deixei de lado o sublime, a plenitude etérea dos conteúdos metafóricos, submergi no mundo-lama até o pescoço. Levava minha vida como um espectral personagem que houvesse sido demitido do seu romance e perdera o vínculo com a realidade quando certo dia fui acometido por uma síncope, perdi completamente os sentidos, saí do ar por um bom tempo. Foi um completo mergulho no inorgânico, no nada, o oposto do jorro abundante e vital da arte. Como os mistérios inexplicáveis relatados pelos livros sobre paranormalidade, um belo dia abri os olhos e dei como terminado o meu longo eclipse, regressei de obscuros umbrais e, através de extensos e profícuos exercícios fisioterápicos, fui retornando minhas atividades cotidianas. Então lembrei-me de que durante o período em que estive inconsciente tivera um sonho delirante. Vi-me numa civilização completamente ultrapassada onde não havia escrita e eu, como se tivesse sido de alguma forma transportado da contemporaneidade para lá, era o único que possuía esse admirável dom de plasmar maravilhas em palavras plásticas. Tornei-me o rei e com o meu poder revolucionei aquele povo, que emergiu de um estágio de barbárie iletrada para a aristocracia espiritual culta. Resolvi então relatar esse sonho em um livro, que se tornou best seller, estourou em todas as livrarias, tornou-se um guia espiritual e exemplo de superação, pois eu, um trânsfuga da escrita, dava ao mundo um testemunho de libertação e soberania de um povo através da educação, da cultura, da beleza sapiencial das palavras, completamente inúteis para os sistemas capitalistas, mas necessário até mesmo a estes, mesmo que não o percebam. Ganhei muito dinheiro e fama com o livro, retornei decididamente a escrita e hoje sou traduzido em mais de quarenta países. Um dia recebi um estranho e-mail escrito em uma língua que eu desconhecia por completo, mesmo falando mais de quinze idiomas, habilidade que adquiri de forma inexplicável quando voltei do meu coma. Tratava-se de uma espécie de ideograma. “Oli kirjoitettu”, era a mensagem. Apenas isso. Resolvi recorrer à ajuda de uma respeitada escola de idiomas da cidade, pedi que decifrassem aquela mensagem, mas sem sucesso. Ninguém lá conhecia aquela língua. Fui também à faculdade de letras da universidade federal da cidade, mas lá também ninguém conseguiu identificar que língua era aquela. Então, como último recurso, soube que havia um paranormal que trabalhava com interpretações esotéricas de línguas de antigos povos. Corri até ele. Durante a consulta ele entrou numa espécie de transe, pegou rapidamente a caneta e começou a escrever de forma elétrica, até rasgou um pedaço do papel. Ao final ele, com os olhos revirados, agradeceu ao Altíssimo, relaxou e me entregou a tradução daquele enigma. Ele me disse que aquela língua era de uma antiqüíssima e atrasada civilização, que, segundo consta nos livros de história apócrifos, teria recebido a visita de um líder intergaláctico que hes ensinou a escrever e a ler, elevando-os a uma grande potência. Depois esse líder desaparecera sem deixar vestígios. Não tive dúvidas de que havia recebido, de forma fenomenal, inexplicável, uma mensagem do povo que visitara durante o meu coma. Quando, tremendo de tão ansioso, fui finalmente ler a tradução, quando finalmente fui desvendar o significado daquele pictograma, apareceu à minha frente, em letras garrafais bem grandes e de forma inequívoca, a frase, que li com os olhos arregalados, incrédulos: “ESTAVA ESCRITO!”.