A Brecha no Sótão da Alma

Existem algumas coisas que não conseguimos deixar para trás. Existem momentos tão absurdamente congruentes com tudo, com a solidão, com a companhia, com a alegria, a tristeza ou até mesmo com a mais profunda depressão. São momentos e histórias muito únicas. Não importa se são traumas ou realizações positivas, são sempre presentes. Não respeitam tempo ou desejo. Esses dias ou essas sensações permanentes têm um poder de impacto que marca algo. Deixam uma mancha ou uma cicatriz muito profunda na nossa alma. Lá dentro, guardamos com egoísmo, ou com o medo da ausência. Se perpetuam marcas de luz ou de trevas em cada um de nós. A transcendência, algo tão almejado pelas pessoas, é sempre uma coisa mais próxima do que pensamos. Heranças pálidas e muito pequenas, mas sempre eternas. Eu sei que todos nós sentimos essas coisas sem nome, é uma das poucas coisas de que tenho conhecimento.

Não existe deficiência ou deformação capazes de profanar essas coisas preciosas. Mesmo no cérebro mais deficiente em termos médicos, vai existir uma consequência externa. Uma família que perde um ente querido por causa de uma doença debilitante que impediu essa pessoa de falar ou de se mover, deixa essa cicatriz profunda. Talvez não na pessoa debilitada, mas nos próximos ao redor desta. Suicidas deixam saudades e dúvidas cruéis, pacientes com doenças terminais deixam todo o sentimento de impotência e de revolta muito mais presentes. Mas sim, mesmo que externamente, existem consequências de momentos e ações. Não há nada na natureza que não modifique algo nela própria.

Há também a marca mais cruel de todas: a marca indefinida do coração partido por um amor que nunca deu planos de dar certo. Mas não apenas um amor, e sim, vários. O amor pela própria mãe ou algum parente que desempenhou esse papel é tão, mas tão singular e intenso, que quando é perdido, quando é trazido a tona pela ausência, fere imensamente. Dizem que um único bater de asas de uma borboleta pode provocar desastres naturais. A perda de uma sensação tão cheia de ternura é como o bater caótico da asa de uma borboleta. Posso jurar que o buraco deixado pelo desastre dessa perda, pode ser sentido pelo universo. Quando finalmente entendemos que não há volta, entendemos que nada retorna ao seu estado original. Quando conhecemos a entropia cruel e inevitável que existe em tudo, entendemos o quão trágico é estar vivo. Não é questão de opinião, é simplesmente algo revelado e real. Seja a perda da sua amada ou do seu amado, ou da sua mãe, ou do seu gatinho, ou de quem mais for, causará uma brecha. Essa brecha invisível nos nossos corações nos marca. Não é atoa que quando a mente morre um pouco, o corpo adoece. É culpa desse espaço em aberto.

Não quer dizer que não pode ser preenchido. Nem tudo é caos e nem tudo é para sempre da mesma forma. Pode sim ser para sempre uma memória impactante, mas não é impassível de transformação. Tragédia é feia, é horripilante. Mas os humanos, tão complexos como são, aprenderam a transformar a escuridão em arte. Um conceito tão amplo e mesmo assim definido sempre de forma tão arrogante, embora muito precioso e vasto. Pois esses sentimentos que nunca se vão, sofrem uma simbiose com o hospedeiro que somos nós, e se transformam em uma pintura, uma pintura que pode ser tão arrepiante quanto reconfortante, dependendo sempre dos olhos de quem vê. A janela por onde se mudam esses impactos, é sempre uma questão de perspectiva. A vida não é tão bela que permita a todos enxergar tudo com otimismo, uma vez que ela mesma deixa claro que vai acabar uma hora, por motivos desconhecidos. Pessoas morrem todos os dias, mas quando sabem transformar suas vidas em significado, marcam os ares com emoções que sempre estarão lá, para que os próximos desastres dos futuros corações, possam se lembrar desse fato imutável com um pouco mais de leveza.

Guilherme Coelho
Enviado por Guilherme Coelho em 02/07/2022
Código do texto: T7550444
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.