Parágrafo.

Por volta das duas da manhã, senti um cheiro, vindo do profundo do nada. Era seu. No meio das coisas que sobraram, das carniças e das cortinas que você deixou, eu fiz questão de dedetizar, aromatizar e desinfetar cada germe da sua lembrança. A baba do seu sorriso, no travesseiro, seca. Sua roupa, molhada, seus gestos, úmidos. Seu sexo presente, e seu nexo ausente, embebido nas lágrimas que bebi.

Engoli a distância que me fora imposta e limpei. Limpei. Esfreguei com alvejante, onde nos esfregávamos; sua pele alva, meu eu, avante. Devagar, divaguei enquanto levantava o tapete e recolhia seus cabelos, que eu tanto varria e depositava, enquanto você depunha e recolocava-se, sempre, de volta em cima de mim, seus pelos pentelhando em minha garganta.

Deposto, me reponho e me disponho, em postas frias que você não comeu. Minhas sobras, putrefatas, o odor fétido que sinto à distância que você me deu. As calcinhas, ficaram; os calçados, foram: nos seus pés. E em pé eu fiquei, sem entender em que pé ficamos. Calo nas solas e calo minha voz. Você, surda, sempre muda: cega a faca em que tentei me cortar de você.

Mas o que realmente me fere, são os cacos de vidro do seu coração de taça de vinho. Leve, levinho, você se vai. Pelo ralo, eu, ralado, te escorro. Te escarro. E você, corre. É só o que pode, e o que sabe fazer. E a cada passo, eu passo o ponto que você ocupou, e ponho um ponto onde você parou.

Ali, onde você sempre parágrafo.

Gustavo Alvaro
Enviado por Gustavo Alvaro em 27/04/2021
Reeditado em 27/04/2021
Código do texto: T7242763
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