Vulto caminhante.
Vulto caminhante.
No escuro do caminho um vulto se acerca. Vindo de onde? Ninguém sabe.
Na aldeia um reboliço. Primeiro em surdina depois em gritos aflitos escuta-se que uma sombra sinistra tinha sido vista nas ruas menos movimentadas.
O sol começa a espreitar, uma claridade, fraca e ilusória, projeta uma iluminação muito ténue. O vulto silencioso e andrajoso prossegue o seu caminho.
A vida tinha-lhe pregado a mais terrível e injusta das partidas. Sem eira nem beira os seus dias consistiam numa deambulação permanente por entre as sombras dos caminhos. Enfraquecido pela fome e pelo frio o seu corpo estava dormente, insensível. A sua voz esconderam-se o os sons pouco davam a ouvidos alheios. O seu rosto outrora dono do mais belo e puro sorriso, tinha-se fechado e, o rosto outrora lindo, estava sulcado de rugas profundas.
Sinistro? Não, sinistra foi a vida que tudo lhe prometeu e tudo lhe roubou.
Na sua memória uma lembrança vaga de um lar e uma família, das gargalhadas de crianças felizes de rostos lambuzados pelos doces que avidamente devoravam.
Uma noite enquanto todos dormiam, a claridade tinha envolvido a sua casa. Um calor imenso, sufocante e crepitante saído do mais terrível dos pesadelos. A casa envolta em chamas era avidamente devorada em conjunto com os seus habitantes. Subitamente por milagre ou castigo divino, uma torrente de água abateu-se sobre ela devolvendo-a à escuridão. Sem saber como, percorreu todas as divisões mas o que encontrou foram cinzas e corpos carbonizados.
O brilho dos olhos desapareceu levando consigo a razão.
Diz quem viu que dos olhos nenhuma lágrima rolou, o fogo secou-as definitivamente. Como um autómato sem alma, entrou em perpétuo movimento e, de repente, um vulto sinistro começou a ser avistado nos caminhos, um vulto de morto-vivo. Um corpo onde a vida teimou ficar e a morte se tinha instalado na alma.
Nas aldeias vizinhas o povo dizia ser visitado por um fantasma que assustava os mais supersticiosos, mesmo nunca tendo ameaçado ninguém. Um fantasma que unicamente percorria os caminhos num caminhar de loucura pacífica feita de um desespero nunca chorado, talvez na procura de um grito que soltasse a dor ou de um choro que lhe lavasse a alma.
O vulto passava, e o tempo tornou-o lenda.
Ele? Ela? Não interessa.
Os anos passaram mas, ainda hoje há sempre alguém a afirmar que a sua caminhada continua, desesperadamente, pelas sombras dos caminhos.