O CASULO
Fechei-me dentro de mim e deixei que uma hecatombe de recordações me soterrasse. Fiquei surpreendida de não ter visto uma única recordação boa. Que teria acontecido? Nesta altura o mal que me faziam era mais significativo. É normal que tivesse ficado em destaque na minha memória para sempre. Remexi nas cinzas do passado e acabei por encontrar algumas coisas boas. Devem ter sido estas coisas boas que evitaram o meu naufrágio.
Lembro-me perfeitamente que sempre tive memória de elefante e ainda hoje recordo as coisas antigas como se estivesse assistindo a um filme na pantalha da vida, com uma nitidez impressionante. Já as mais recentes, esqueço com facilidade.
De qualquer modo, o facto de estar viva é uma coisa boa, a vida é uma benção. Que me importa agora o que me fizeram no passado? Quando eu era criança, cometiam-se atrocidades, estou a falar de crimes que eram praticados como se fossem coisas normais. Ainda bem que esses crimes, hoje têm nome e são punidos pela lei para salvaguarda de crianças inocentes. As crianças são todas inocentes, são crianças.
Fui obrigada a crescer num mundo só meu que eu mesma construí, circundado por muros de betão armado. Não queria deixar entrar o mal, ilusão de garota inocente e ingénua, esse mal que me acorrentou a uma mentira vil e infame e só me largou, já na idade adulta, no dia que tive coragem de derrubar os meus medos e as minhas fragilidades e rebentar as correntes enfrentando os meus agressores.
Vivi durante longo tempo acompanhada pela raiva, pela revolta e pela busca incessante de mim própria. Esta era uma batalha secreta que eu travava comigo dentro de mim. Queria saber quem era, donde tinha vindo, para onde ia e porque tinha vindo. Eu não me identificava com nada, o que fazia parte do meu círculo era tudo demasiado comezinho. Sentia-me um alienígena largado numa selva, num habitat completamente hostil. Contudo, eu sabia que iria curar todas as minhas mazelas. Eu sarei as minhas feridas e hoje podem chover picaretas, porque não me derrubam nem metem medo.
Perdoei os meus abusadores, abusadores são todos aqueles que maltratam, infringem e desrespeitam os direitos de outrem. Reconciliei-me com o meu passado, a raiva deu lugar ao amor e a revolta ao apaziguamento.
Aprendi a amar toda a gente incluindo os que me fizeram mal, embora não consiga sentir proximidade, como se existisse um fosso de permeio mas o amor e o carinho que ponho em tudo é genuíno em mim.
Estou grata á vida e a Deus que me deu força e coragem para me reconstruír, colocando ao meu dispor sólidos materiais que pacientemente ia adquirindo e proporcionando-me as ferramentas adequadas, ganhas nos vários desafios.
Jamais farei aos outros o que me fizeram a mim. Evoluí, criando uma mente aberta e uma postura dinâmica e generosa, mas também me tornei mais cautelosa, como se estivesse sempre na defensiva, esperando um ataque a qualquer momento.
Nunca se deixem contaminar pelo mal. Embora muitas vezes pareça ser o caminho mais fácil, não compensa, corrói. Lutem e não deixem que vos tornem pessoas amargas. Um dia o casulo romper-se-á e sairá uma linda borboleta. Sabem qual o meu doce preferido? Arroz doce! Um doce simples e bem docinho, tal como eu!
O que não nos acrescenta, não nos faz falta, é como se não existisse. Não deixem que vos tirem a paz e roubem a vossa idiossincrasia. Mantenham-se firmes, o dia do juízo final chegará!
© Maria Dulce Leitao Reis
01/03/21