Linha tênue

A vida é um trançado de fios, de múltiplas cores, texturas, comprimentos. Eles se entrelaçam sem se preocupar em formar um padrão. Os fios em si nem costumam chamar muito a atenção. Vemos o todo, não temos muito tempo para detalhes.

Hoje, porém, tentando entender um pouco melhor a vida, reparei como as linhas são tênues! Assustou-me mesmo a sutileza que existe na diferente entre o sim e o não, entre presente e passado, entre vivo e morto, entre certo e errado, entre eterno e fadado ao fim.

Não sei se é esse maldito efeito borboleta que decide por um ou pelo outro. Mas me espanta ver como ações tão próximas podem levar a destinos tão distintos. Parece um trânsito tão banal ir de A a B, mas jamais de B a A, nessas vias de mão única.

Descobri que meu "quase sim" tinha muito mais cara de "não", por mais que eu estivesse tão perto de optar pelo primeiro. Descobri que às vezes não é necessário nem um dia inteiro para um presente recorrente migrar definitivamente para o passado.

Descobri que morrer ocorre em um breve instante. Um último suspiro, um último sinal vital, uma última palavra equivocada, um último desentendimento, um último erro, uma última falta de perdão, uma última desistência. Bastaria não ser o último e ainda haveria vida, mesmo que precária. E, havendo vida, seria possível não cruzar para o outro lado. Mas a linha é tão tênue que nunca sabemos exatamente qual será "o último", "o fatídico", em meio a tantos.

Descobri que nem sempre o que é certo resulta em algo certo. E também que certo e errado não são assim tão diferentes. Há erros que não causam arrependimento e acertos que clamam por redenção. E, entre um e outro, interpõem-se, por vezes, meros detalhes, não sempre abismos.

Descobri que eterno tem mais a ver com sentimento do que com tempo. Afinal, ninguém nunca pôde, nem poderá jamais, testificar que algo durou para sempre. Eterno é sentimento, é expectativa, é estado de espírito. É eterno enquanto parece eterno, e no instante que deixa de parecer, já não o é. Basta uma sútil mudança de percepção para que passe a ser fadado ao fim.

A transição mora no "é até não ser mais" e como me intriga a dimensão desse "até". Queria removê-lo da oração e desfazer a subordinação. E, assim, o sim seria sim; o presente continuaria presente; o vivo não chegaria a morrer, o certo seria certo e o eterno... iria além das gerações, ou mesmo do fim do mundo. Enfim, o eterno seria. Assim mesmo, com cara de sujeito. Ensaiando seu papel de predicativo, o eterno seria eterno. A partir daí, qualquer coisa poderia escapar do fim.

Porém, observando os detalhes da vida, percebi que não se escapa do fim. O "até" é imperativo, não abre mão de seu lugar. Mora justamente nessa tal linha tênue, só ela sabe onde acaba um para o outro começar. Vai exatamente até onde o até determinar.

Dancker
Enviado por Dancker em 10/09/2020
Código do texto: T7059338
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