O grande capítulo da solidão

Além da tão conhecida ideia da solidão ainda que cercado, sentia a solidão acompanhando-a. Não deixava de abrir sorrisos, cantarolar e se afundar em significados, entretanto o fazia de forma hipnótica e adicta. Escrevia por amor e vício, lia por vontade e desamparo, estudava por sentido e por ausência dele. Estava tudo lá, ao mesmo tempo, caminhando lado a lado. Engolia linha por linha, em fitas, como se fossem acumular-se por dentro, como se fosse costurar com agulhas mágicas o que soltou-se sabe lá Deus quando. Deus. A única onipresença possível era o vazio, o abismo que te olha de volta.

Sentava-se nas manhãs como quem sabe exatamente o que fazer, corria contra o tempo, repetia meia dúzia de frases cordiais. “Bom dia”, “adoro café”, “claro que não incomoda”, “tudo bem?”, “a faculdade tá uma correria”, “tá tudo bem”. Enganava bem, geralmente, escorregava entre os dedos da realidade em direção às águas conhecidas dos pensamentos. Inalcançável. Embalava-se a noite pelo indizível, pelo desconhecido e pelas dúvidas, recusava ver-se como produtora de algo no mundo já que não gostava do que produzia. Rabiscava seus mantras na última folha do caderno, para si mesma, frases estas que já estavam escritas na carne. Quando o papel não bastava escrevia em si mesma, a caneta, como consolo e aceitação da não estabilidade da vida. A tinta da caneta se esvaía tão rápido quanto os afetos que investiam nela, que ela investia. Afetar-se era doloroso, apresentar-se como era se tornou um processo de automutilação. Não sabia se o que fazia era seu, dos outros, ou de ninguém. Repetitiva, aceitava migalhas enquanto jurava estar recebendo a melhor das refeições.

Como o transporte público nas noites de volta para casa, ela também estava cheia de vazios. Uma escuridão física, palpável, real. O real sempre se mostra para além das nossas fantasias. Caminhava por caminhos decorados, que não erraria nem de olhos fechados, se sentindo notada por absolutamente ninguém. Gostava da chuva e de seu péssimo hábito de não se precaver quando em meio às gotas se misturavam lágrimas que ninguém veria. Ninguém. As lágrimas eram quentes até o segundo contato com a brisa, sorria vez por outra aos transeuntes, vibrava a cada mudança de música nos fones de ouvido. Sentia-se pequena, minúscula na imensidão de pessoas enormes que a cercavam por todos os lados com suas felicidades expansivas.

A solidão vinha amarrada ao tornozelo, pesada, escura, cheia de abismos particulares. Era presença sentada ao lado, no banco que ficava mais longe da janela, dialogando sobre as impossibilidades mil que se criavam a cada passo mais longe de casa. Era estado de espírito inerente à vivência diária, entranhando-se em todos os lugares e colando-se até se tornar intrínseco aos processos mais banais. O sentimento das quartas-feiras cinzentas era derrelição, como ensinara uma vez um professor de Filosofia e ela amava essa palavra tanto quanto temia.

O que fazer quando o silêncio eterno desses espaços infinitos te apavora?

H C Oliveira
Enviado por H C Oliveira em 10/07/2020
Código do texto: T7001394
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