Sexagésimo oitavo dia
"A quarentena do poeta"
Sexagésimo Oitavo dia:
No dia em que se antecedera a uma frente fria, fizera dois meses que eu não saíra de minha morada. Resolvera escudar Maria no caminho do pequeno mercado. Passara-se de vinte mil o número de famílias que derramaram lágrimas em todo território nacional e uma cena me incomodara:
Eu aguardara Alice dentro do automóvel a utilizar o meu kit de proteção e filmara os seus passos lentos e alongamentos a catar os alimentos nas gôndolas gigantes;
jovens transitavam pelas calçadas desprovidos dos panos de rosto que o aparelho locutor alertara a cada minuto e entravam no ambiente comercial a calcarem a conformidade como se nada estivesse acontecendo, o que me deixara nervoso ao ponto de socorrer Maria; um cidadão pertencente ao grupo de risco invadira o interior do refrigerador vertical e manuseava várias latas de cerveja a introduzir em outras, jatos do seu bafo.
Eu quase caíra na provocação, todavia, Maria e sua sabedoria me arrastaram levemente de volta para o nosso transporte e retornamos camuflados e temerosos com a sociedade doente e iminente à grande tragédia.
Seria cultural a teimosia do povo que acostumara a ocupar as beiras da sociedade e naquele momento o processo de educação se tornara impossível. O não conhecimento de causa do assunto que poderia eliminá-los, fizera com que aqueles indivíduos agissem por conta própria e a única forma de se defender seria afastar-se o mais rápido a criar um inevitável preconceito social.
Os bares que receberam a visita do maldito invasor estavam a ser isolados e eu pedira a Deus que tivesse misericódia dos dependentes de suas drogas psicotrópicas.
Na entrada da garagem, os inocentes assintomáticos garotos disputavam o cortar de suas pipas que bailavam e corriam pelas ruas a escalar os muros na tentativa de retorná-las para o ar.
Ao adentrar em nosso espaço, em ritmo de paranoia, retiramos nossos calçados e nossa vestimenta a correr para tomar um banho saudável com excesso de espumas afrodisíacas.
Era a volta ao nosso forte e existira uma certeza de que estávamos seguros, pois havia os pássaros puros a nos saudar e o menino sadio que interessadamente ajudara na arrumação da despensa a separar o seu biscoito de vaquinha.
No entrar da noite, eu, esquecido daquele clima de insegurança, caminhara mais uma vez em volta da casa a criar frases sem rimas e com estranhamentos para que os pensamentos fossem diversos no mundo dos leitores de minha literatura.
Pragas
O mundo está cheio de pragas
Espalhadas no vácuo, no ar
Não adianta tapar a bocarra
Se os olhos não podem fechar
Que abertos assistem de perto
O vingar da mazela
A pousar livremente nos bares
E nos becos da favela
Vê-se o vulto da morte
Ao redor da necessidade
O pobre a contar com a sorte
E o rico conta a mortalidade
Há outra doença que mata
A ferir a alma da pobreza
É o penhor do pobre
Que não come na mesa