Mar morto

Todos os dias me pego divagando, mergulhada tão intensamente sob meus próprios pensamentos que parece que vou me afogar, até que lembretes de uma sociedade de metas me culpabilizam pela minha não produtividade e me livram desse mar de ócio, quase como um bote de salva-vidas. Em uma das minhas imersões favoritas, você ainda sente minha falta como eu sinto a sua, você ainda anda pelos corredores da faculdade com receio de me encontrar porque ainda dói, você ainda evita os lugares em que sabe que vou estar, nos horários em que vou estar. Você desvia das sombras que faço de fora da água enquanto você se afoga,e se afunda, e se sufoca na sua própria mente. Você ainda pensa em mim e fica ansioso quando precisa fugir das suas fugas e ir em algum lugar, em algum horário, que talvez possa me encontrar. E fica aliviado quando não estou. Fica aliviado porque doí. Porque por mais que fosse tóxico, mais pra mim do que pra você, era único, era forte, era especial. Porque eu tinha me tornado parte de você e você parte de mim. Hoje vivo o luto de uma parte que morreu. Morreu por asfixia. Foi encontrada com um cogumelo de espuma a beira da praia. Com os olhos abertos. Cabelos emaranhados com areia. Decomposta.

De repente me apoio na boia, respiro o ardente e real ar atmosférico. Me salvei de mais um afogamento. Nada disso é real. O que eu vivo por essa morte é unilateral. Você não pensa em mim, você não liga de me encontrar, o seu coração não gela, quase que como por lembrança da água fria do mar, por alguns segundos ao me ver. Você não foge de mim porque não doi. Porque nunca doeu de fato em você. Vivo com mais uma dor: a dor psicológica de um afogamento solitário de algo que nunca foi recíproco. Eu nunca fui parte de você como você é de mim, mas apesar disso vivo ainda com esse cadáver preso ao meu corpo, esperando que um dia se decomponha por inteiro e vire só matéria orgânica dentro de mim. Espero que fertilize um novo amor, bem longe do mar ou de qualquer corpo fluvial. Um amor que não afogue ou seja instável sob a água, mas seja feito em terra firme, que floresça e que frutifique. Como o cadáver que serviu de adubo, espero que o sofrimento vire aprendizado, que a natureza mais uma vez se recicle. Sei que as divagações são imprescindíveis ao sofrimento da vida, mas já que não podem ser evitadas, que sejam feitas numa banheira, ou numa piscina, em qualquer lugar onde seja sempre possível tocar o chão.

Helena Goulart
Enviado por Helena Goulart em 31/03/2020
Código do texto: T6902668
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