Mais-valia

Alguns anos da infância passei em um bairro planejado, de classe média operária. Originalmente, o bairro foi dividido por setores. Cada categoria profissional possuía seu setor e adquiria casas através de vínculos com seus institutos de aposentadorias. Havia o “setor da vale”, porque vendido a trabalhadores da Companhia Vale do Rio Doce; o “setor dos comerciários”, cujas casas foram financiadas aos trabalhadores do comércio; o setor dos industriários, o dos funcionários públicos etc.

Quando cheguei para morar no bairro, convivi com os netos, os filhos, e os próprios trabalhadores que compraram as casas. Era nos anos 90 e, tal como no resto do país, as palavras classe média e operária passaram a viver cada vez mais em bairros diferentes. Entretanto, ainda pude perceber que, para boa parte dos vizinhos, o ofício que cada um exerceu compunha as relações.

Havia um maior respeito se o sujeito tivesse trabalhado na Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), à época estatal, e se via com os mesmos olhos de admiração os trabalhadores de outra empresa pública, a Companhia Siderurgia de Tubarão (CST). Era um tempo em que se prometiam privatizações e que, devido à anos de enxugamento da máquina pública e de inflação galopante, os setores dos funcionários públicos e comerciários já tinham perdido status.

Com o tempo, vieram as privatizações e, com ela, as demissões em massa dos operários. O bairro assistiu a uma onda de depressões, incertezas e dívidas. Quem não tinha tempo de serviço para se aposentar, acabou ficando sem ambiente seguro, a não ser nos bares. Nesse caso, havia um em especial, que recebia boa parte dos trabalhadores que outrora compartilhavam as vitórias laborais. A partir daquele momento de crise, o bar não fechou, pelo contrário, aumentou seus frequentadores em número de aposentados, demitidos e trabalhadores ameaçados. Literalmente, ao lado da farmácia, ficavam todos no bar, à espera de um remédio.

Essa cena se repetiu no Brasil todo, porém, quando se chegava no boteco do meu antigo bairro, logo se via na parede o que hoje seria considerado humilhante e vexatório, mas que dizia muito daquele tempo.

Havia na parede do bar a lista dos “maus pagadores”, como dizia o próprio cartaz. Ao lado de cada nome da lista, estava sua profissão. “Fulano de tal - ferroviário da Vale; Sebastião, vulgo Tião da CST; José Bonifácio - bancário”. Era um tempo de desemprego: pouco dinheiro e muita bebida.

Hoje, pensando, chego a acreditar que, para boa parte daqueles homens, o emprego só ficara naquela lista do bar. Inconscientemente, não pagar a dívida e ter seu nome associado a antiga profissão era seu único recurso à um reconhecimento público. Por outro lado, era como se, quanto melhor fosse o emprego – geralmente, em uma estatal -, maior era a “dívida social”, o vexame.

Não importam os motivos do não pagamento. Naquele tempo, até mesmo o credor reconhecia o valor que tinha o trabalho.

Lucian Rodrigues
Enviado por Lucian Rodrigues em 29/09/2019
Reeditado em 29/09/2019
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