A ENTREVISTA

Certo dia estava Xico Bode em seu gabinete, quanto entra sem disparada o guarda Ambrósio:
Guarda Ambrósio:
-Senhor Xico Bode!! Senhor Xico Bode!!
Xico Bode:- O que foi, guarda Ambrósio?
Guarda Ambrósio:
-Tem uma galega estranha na cidade procurando o senhor prefeito.
Xico Bode: - Que diábos de galega é essa?
Guarda Ambrósio:
-Ela escreve para uma revista lá do sul e se diz repórter, jornalista ou sei lá o quê.
Xico Bode:
-Mande entrar a tal galega. Estou sabendo que anda fazendo um bocado de perguntas bestas por ai.
Reporter:- Bom dia, Dr Xico Bode!!
Xico Bode:
-Bom dia, minha filha!! Vamos direto ao assunto!!
Repórter:
-Pois não, Dr Xico! O Senhor pode explicar ao povo como se tira proveito da seca?
Xico Bode:
-Muito simples, minha cara galega! Se não chove, tenho o monopólio da água e cada morador está autorizado a levar para sua casa duas latas de água por dia do meu açude, desde que seja meu eleitor,
Reporter:- E se ele não for seu eleitor?
Xico Bode:
-Aí ele vai morrer de verdade, estorricado, para deixar de ser besta e, na próxima eleição, votar no candidato certo!
Repórter: O que mais o Dr Oferece ao flagelado?
Xico Bode:
-Uma vez por mês autorizo uma pescaria de anzol em um dos meus açudes, somente para meu eleitor e libero até dois kilos de traíras e corrós para cada familia. Também alisto meus eleitores nas frentes de trabalho para cavar buracos.
Repórter:-
-35 reais por mês é irrisório para um pai de familia comprar o básico pra sua casa.
Xico Bode:
-Nada disso minha querida repórter!! O buraco que ele cava não tem serventia alguma e todo mundo sai ganhando com a verba federal.
Repórter:
-Daria para o Dr explicar melhor essa distribuição de verbas emergenciais que vêm para o municipio?
Xico Bode:
-Muito simples, minha repórter!! Brasilia me libera devidmente contabilizada a verba de 9 milhões, a Sudene diz que recebe apenas 5 milhões que libera de imediato para Muçambê. Chegam aqui, 200 mil reais, e eu, que não sou nada besta, libero e presto contas para o povo de 10 mil reais. Por isso adoro a estiagem e me sinto um felizardo da seca.
Repórter: - O povo não reclama, Dr Xico?
Xico Bode:
- O povo daqui gosta mesmo é de beber e comer de graça. Quando libero o açude para pescarias, tem nêgo que adoece de caganeira para não ir pescar. Adoram o paternalismo, gostam do emprego na prefeitura, mesmo ganhando 1/3 do salário. Só  e motoritas tenho 215 na folha de pagamento, e o único vaéiculo que existe na prefeitura é a minha Rural Willys, ano 69.
Repórter: Por que o fenômeno do empreguismo?
Xico Bode:
-Não existe fenômeno coisa alguma. Posso ser esperto, mentiroso, ladrão, sou tudo, menos hipócrita. O que existe mesmo é a preguiça, acomodação, despreparo, desqualificação profissional, dependência e servilismo. Todos querem o emprego, mas ninguém quer trabalhar. O sistema implantando é verdadeiramente aceito, vem desde a época do meu bisavô. Apanham, não mudam e continuam votandona minha família.
Repórter:- Isso é bastante grave, Dr Xico Bode!!
Xico Bode;
- É grave, tristee cruel, mas verdadeiro. Eles reclamam, porém adoram o paternalismo. Todo morador daqui insiste em ser funcionário público municipal.
Repórter: E o Dr. não fica preocupado?
Xico Bode:
-A única coisa que realmente me preocupa é a inexistência da bacia leiteira do município. O leite consumido aqui vem de uma cidade vizinha.
Repórter:
-E por que não a criação de gado leiteiro no município?
Xico Bode:
-A minha santa Gertrudes tem pavor ao cheiro do gado: prefere do cheiro do cavalo.
Repórter:-  Quem é Gertrudes?
Xico Bode:
-É a minha amada mulherzinha, a primeira dama do município. Copiou esse olfato estrambótico do ex-presidente Figueiredo. Muito amigo nosso. A diferença é que o ex-presidente odiava o cheiro do povo, e a minha santa Gertrudes odeia o cheiro do gado.
Repórter:-
-Obrigada pela entrevista, Dr Xico Bode!! Boa seca e feliz estiagem para o senhor!!
Xico Bode: Deus a ouça, minha cara repórter.
Como sempre o tempo segue quase parando, tudo correndo as milmaravilhas em Muçambê: povo chorando, cestas básicas chegando, comboios de carretas de alimentos, holofotes, TVs, anunciando, LBA, LBT, ACM, TXY, TFP, PQP, UNICEF, CUT, que lindo!! todomundo colaborando!! feijão furado, empestado de gorgulhos, que barato!! arroz de terceira, que humilhação!! leite de C a Z e crianças morrendo no atacado, a LBT ajudando e crianças morrendo de inanição. Um candidato a presidente faz uma breve visita, se comove e chora ao vivo para toda nação, e continuam crianças a morrer de fome. Comparece também o presidente eleito, sente dor no peito e chora copiosamente no ombro do governador. Chegam o vice-presidente (ninguém conhece), o chefe de esatdo-maior, o minitsro dos ministros e acham o quadro sinistro. E mais crianças morrendo de fome...Passam por lá o chefe da casa civil e o chefe do chefe do corpo de bombeiros, o outro chefe da mulher do chefe(êta paísinho para ter chefes!!). Aparece também o tio da mulher do senador. E continua o entra-e-sai em Muçambê,- que coisa linda, meu Deus!! nunca vi tanta solidariedade... Surge também, saido de não sei onde, um cientista louco, demonstrando seu novo invento, água em pó, e, imediatamente o chefe da Sudene se apresenta para financiar o projeto da bendita água em pó. Mas tudo continua na mesma, desde da época em que pintou por lá um cara da Mornarquia com cascata de vender o último brilhante da coroa dele. Vendeu a coroa, comeu o dinheiro e Muçambê continua na bancarrota: sem escola, irrigação, saneamento básico, posto de saúde, atendimento médico, remédios.

Livro: A Vaquinha da Primeira Dama
Editora Cepe (1998)
Págs 29 a 33

continua.