Recomeço

Os jovens caminhavam lentamente com barulhos de risadas estridentes enquanto ela procurava se concentrar na leitura. Ela se perguntava em que momento foi que esse barulho começou a incomodá-la tanto, justo ela que nunca foi silêncio por onde quer que passasse. Lembrou-se dos momentos em que seu barulho incomodava outras pessoas e sua risada escandalosa e não contida ecoava por todos os cantos. Agora os mesmos sons a incomodavam, sentia uma irritação que deveria ser própria de pessoas muito antigas, lembrou de sua bisavó e de sua cara sempre fechada que nunca gostava de receber os bisnetos e sorriu, se imaginou velha furando as bolas que caíssem em seu quintal apenas com a intenção de meter medo nas crianças da rua. Nunca odiou de fato as segundas, mas naquela segunda em especial sentia um aperto e um cansaço como se tivesse carregado um fardo durante a noite. Sentia a respiração pesada e seu maior desejo era deitar e dormir o resto do dia, esperar que o próximo fosse talvez menos angustiante. Não queria conversar, mas parecia que possuía um ímã para pessoas que queria jogar conversa fora e naquele dia não foi diferente, ouviu sobre uma ressaca, sobre um boleto atrasado, sobre uma nota ruim e um orientador que não respondia e-mails, o resto não ouviu, se ouviu não se atentou, deixou as palavras fluírem e só fez cara de quem se preocupava com o assunto, sabia que as pessoas gostavam de ver uma cara de espanto junto com um sorriso enquanto falavam.

O dia corria como o esperado, a rotina de sempre e ela pensando se poderia deixar algumas das obrigações para deitar e admirar o teto, ou a parede, ou a parte interna do cobertor, qualquer coisa que fosse, desde que estivesse deitada em sua cama. Lembrou de um filme que queria assistir, mas pensou que não seria uma boa ideia já que precisava colocar os estudos em dia, pronto estava decidido não veria filme algum, iria se concentrar nos estudos, mas lá no fundo sabia que não conseguiria se concentrar, era um dia demasiadamente estranho e as coisas tendiam a ficar ainda piores. Olhou o relógio na esperança que as horas voassem, mas viu o tempo debochar de seu cansaço e andar ainda mais devagar, dançando sobre suas feridas sem nenhuma preocupação, ora indo, ora voltando, como uma criança mimada fazendo pirraça.

Tentou focar no trabalho, responder alguns e-mails, ler alguns editais mas tudo sem sucesso, aquela incomodo no peito continuava e atrapalhava a concentração. Os colegas conversando quase sempre a irritavam, mas naquele dia em especial sentia vontade de desferir socos e pontapés sempre que um vinha lhe tirar o sossego com algum assunto inútil. Desejava ficar sozinha, mas não sozinha de verdade, uma companhia em especial sempre lhe agradara e hoje era essa que ela queria, por mais que ela fosse uma companhia por diversas vezes irritante, ainda era uma companhia que fazia bem e da qual ela sempre sentia saudade.

Seria um bom dia para tirar uma folga, mas o dever vinha primeiro e não gostava de ser irresponsável. Preferiu tentar manter as ideias ruins distantes e seguir com o trabalho. O dia se arrastou inteiro assim, concluiu por diversas vezes que deveria investir na carreira de atriz afinal conseguia disfarçar tão bem a alma se debatendo dentro dela, ninguém percebeu o conflito interno que havia. Mas quando chegou em casa ela desmoronou. Desabou sobre si mesma. Deitou-se no sofá sem forças para realizar qualquer uma das tarefas a que se propôs, não queria estudar, não queria ver um filme, não queria sair dali, queria apenas sua própria solidão, mas viu que até isso se tratava de uma grande mentira, não queria sua solidão. Nunca gostou dos pensamentos sombrios que a solidão lhe trazia, das mágoas que o tempo é incapaz de levar, das coisas que ficavam remoendo na sua cabeça e a torturando como se fosse sempre culpa dela, tudo no mundo, exclusivamente culpa dela e de suas atitudes impensadas.

Então o telefone tocou, sentiu o desejo de rejeitar a chamada e fingir que não havia ouvido o toque, de relance olhou para a tela brilhante que insistia em vibrar e seus olhos milagrosamente sorriram, um arrepio percorreu todo o seu corpo e suas mãos rapidamente aceitaram a chamada sem saber bem o que deveria dizer, apenas disse: alô. Do outro lado da ligação havia alguém que também não tinha tido um bom dia. A respiração meio instável indicava a cruel dúvida se devia mesmo ter feito a ligação, havia muita confusão mental e o estômago parecia se contorcer a todo o momento, mas finalmente os lábios se moveram e pode-se ouvir:

- Oi, tudo bem com você?

- Sim e com você?

- Estou bem também. Houve um breve silêncio e a pessoa do outro lado da linha continuou:

- Na verdade não, senti o dia todo um grande aperto no peito e uma saudade incontrolável, não sei bem ficar mal com você. Do lado de cá um misto de euforia, medo de não dizer as palavras corretas e o coração descompassado, mas finalmente ela disse:

- Eu também não sei lidar com isso… Sinto um aperto que não sei dizer muito bem…

- Eu estou com saudades. Fez-se um silêncio em que milhares de palavras eram ditas, ouviu-se um suspiro que parecia mais uma conexão de almas. Naquele momento nada precisava ser discutido, já sabiam muito bem o que deveria ser feito.

- Vem me ver

- Estou indo.

Ela correu pro banho pra se preparar, no peito uma palpitação e um misto de medo e de desejo que não haveria dicionário no mundo capaz de dar a definição. Do outro lado da linha os sentimentos não eram diferentes e a pressa em correr ao encontro era desesperadora. Haveria um encontro. No fundo das duas almas o melhor sentimento do mundo, pois afinal lá bem no inconsciente sabiam que mesmo contra todas as perspectivas daquele dia que havia sido tão ruim, haveria sim, ah como haveria, uma noite de amor. Uma noite de amor onde cada beijo e cada toque pudesse reconstruir tudo aquilo que se achava perdido. Sabiam, sim sabiam, que por mais que as coisas tivessem sido difíceis, quando as duas mãos se entrelaçassem e os dois corpos se tocassem não haveria apenas sexo, haveria aquela conexão mental que sabiam que existia. No mundo exterior tudo continuava um caos, mas lá dentro do inconsciente estavam extremamente gratos por pertencerem um ao outro.