Sobrevida
Amputaram-lhe, ainda criança,
todos os vestígios de selvageria
trataram de ocultar-lhe a calda
e disfarçar as orelhas pontiagudas
e a pelagem reluzente
próprias das que correm livres
com fome de vida
negaram-lhe o processo natural das coisas.
a mãe-loba privou-lhe as aprendizagens mais intuitivas
e o sabor da matilha completa
destruíram-lhe o botão disparador de amor próprio,
adestraram-lhe olhar
para ver em si todas as culpas do mundo
amarraram-lhe às costas todos os medos da vida
e ainda assim
sobreviveu.
no caminhar desse corpo, quase morto
há quem veja, vez ou outra,
o reluzir de uma loba
mutilada e acorrentada,
escondida sob mil véus,
mas viva!
que sonha infinidades
para os tempos de liberdade no bosque,
que tem em si
todas as vontades da arte da vida
e que, tão logo,
menos que a carrasca interior espere
e menos que os algozes saibam,
há de trocar todos os quereres
pelo verbo fazer.
e o faro, uma vez alimentado,
buscará os perfumes da matilha universal
até que a loba se ache,
encontre
reencontre
inspirações de um sopro de vida maior.
Eva Vilma - da série Histórias furtadas ao acaso, inspirado nas leituras infindáveis de Mulheres que correm com os lobos e na "sobrevida" real de uma irmã que vem compartilhando comigo a outra ponta de um laço de amizade em tecedura.