Inferno
O viajante acorda e sente o cheiro de terra
invadindo as narinas. Dores insuportáveis
nos membros fatigados, machucados.
Sente o fogo ardente queimando
todo o corpo prostrado.
Atordoado, sente o chicote que assovia e
penetra na pele, estalando e rasgando
suas costas. Para seu pavor, reconhece
mais uma vez a gargalhada insana e
o timbre medonho daquela voz.
“Não juraste que não cairia novamente?”
Palavras que ecoam fundo na alma
fazendo estremecer o corpo febril,
que começa a sentir as chagas
abrindo a cada chibatada.
Entre zombarias e ferroadas o
sofrimento invade a alma, lembrando da
Vida. Ah, a Vida... mais uma vez zombou
das suas certezas, divertiu-se com seus
planos de grandeza para, no momento
seguinte, fazer desmoronar
seus castelos, suas fortalezas.
Novamente estava ali.
Derrotado e humilhado, ferido
e prostrado, respirando mais uma vez
aquele ar fétido, seu inferno particular.
Suportando toda a zombaria e a
danação imposta pelo demônio da
consciência.
Enfim, depois de entregar-se por inteiro
aos sofrimentos, levanta a cabeça.
Vê o vale onde se encontra. Só fogo e lodo.
Sujeira de guerras passadas, derrotas
acumuladas que ficaram ali, esperando
pela queda inevitável.
Com dificuldade se apoia nos membros
feridos, sob chibatadas e impropérios
firma os sentidos e, de pé, encara o
demônio fundo nos olhos. Vê aqueles
olhos ocos e sem vida, aquela carranca
babando por vontade de aniquila-lo.
E em seu íntimo, sente acender mais uma vez
a chama da rebeldia. O demônio reluta. Já
viu aqueles mesmos olhos tantas vezes
acenderem e tornarem-se mais quentes
que o fogo, mais decididos que o mar.
Enlouquecido, aplica mais força à chibata
quando o viajante lhe dá as costas. Num
último desespero de fúria, sentindo perder
mais uma vez o controle atira as lâminas
da dúvida e da repreensão:
“Entregue-se derrotado, ajoelhe e aceite quem
.és. Submeta-se!”
Mas já é tarde. O viajante sereno, fita a
montanha à sua frente. Já não sente mais
as lâminas quentes penetrando a
carne. Nem ouve a insanidade dos
brados impotentes do algoz.
Só consegue ver o caminho. E, como
em tantas outras vezes, avança com
passos cambaleantes em direção
ao topo da montanha sabendo que,
dessa vez, a caminhada será longa.
Centímetro a centímetro.