Paisagens da Alma XIX

Estou deitado num banco daqueles de concreto, olho para o celular enquanto escrevo, e o céu se mostra ao fundo como uma paisagem nula, fosca, negligenciado pelos meus olhos, censurado pela minha atenção, como numa foto em que o fundo é pouco visível, sem foco. Um pequeno pé de pinheiro à minha frente, onde escoro um dos pés, mais um pé de manga, dão-nos, a mim e a duas mulheres, uma sombra fresca com clima de fim de tarde, mas não passam de onze e meia da manhã. O céu é cinza carregado de nuvens, e a incerteza da vida desce por sobre as cabeças inquietas, que ouço falar ansiosas sobre seus problemas.

Penso em alguma coisa profunda para escrever, alguma metáfora, simbologia, mas nada significativo, nada a dizer, acho que por isso escrevo. O dia é calmo e certo, não há problemas, vejo a mente buscando em que se apegar, pensamentos voam pela consciência, mas o vento que me acaricia o rosto é tão singelo que os afastam para o nada de onde vieram.

Fico vazio como amplo espaço em que as formas ocupam, o silêncio dos arvoredos é reconhecido como um eco pelo silêncio do coração, simplesmente estou aqui como um cumplíce da vida observando-a, observando-me. Hoje apenas sou sentidos, pura percepção sem interpretação.

A vida vai tecendo a teia da realidade, desenrolando-se: os carros vão passando, a cigarra canta no pinheiro, o vento que balança as folhas, eu que escrevo por escrever.

Não sinto o tempo, só o sentimento de agora se criando espontaneamente no movimento sempre presente de hoje. Assim vai indo o dia e assim vamos nós com ele, sem avisar, passando sem sentirmo-nos a passar. A natureza inspira frescor de jovialidade. Tudo se transforma como se não houvesse tempo, as formas passam para outras formas, transfiguração de uma mesma essência artística, expressão do uno no movimento do múltiplo.

Ouço e vejo tudo como parte de mim neste momento, e a paisagem é tudo que tenho, não existo interiormente senão na paisagem que vejo por dentro: carros estacionados, os transeuntes que passam para lá e para cá, as árvores e suas sombras, os pássaros que voam destacados pelo branco das nuvens que vagam esquecidas pelo céu mudo...

Nada penso. Sou como uma câmera que tudo vê sem ninguém por trás. Escrevo o mundo que vejo, porque este é o mundo que Eu sou nele. Tenho o externo por interno e o interno por externo.

Estou vazio com o mundo inteiro dentro...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 22/03/2016
Reeditado em 02/06/2023
Código do texto: T5582157
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