ÚLTIMO DELÍRIO
Quero morrer, mas a morte parece tardar. Chega nunca! Acho que se perdeu no caminho...
Sempre que me deito a noite, me afronta um relógio de parede antigo, inquieto, me olha nos olhos, me afronta do alto de sua arrogância e diz sempre, “hoje não, hoje não, hoje não...”.
Antes era o trem, o trabalho, a marmita, o sinal da velha fábrica...
Era sofrida a vida, mas era minha, ainda decidia, ainda escolhia, ainda me agarrava ao desassossego como a empunhadura duma espada enferrujada.
Hoje, sou conduzida, esquecida aos domingos por aqueles a quem eu amava...
Talvez eu não tenha consigo expressar o quanto eu me importava...
A verdade é que no fim tenho que encarar sozinha mesmo este o meu ultimo delírio.
Mas hoje o que me fere é esta caminhada, estes passos imprecisos, os cuidados com os degraus, e porra da memoria que não funciona mais.
Não me recordo de alguns rostos, mas todos têm os mesmos traços, meu filho Marco!
Aquele tolo sempre esquecido... Era sempre “Marco, pegou o RG?” ou “Marco, pegou a Bíblia?” e Marco pegou isto ou Marco apagou aquilo. Ele foi o meu ar, cuidava de mim, me pedia a benção mesmo depois de velho, era o meu filho amado, mas o danado era tão esquecido, tão esquecido, que se esqueceu de morrer depois de mim...
Aqui tem muitas historias tristes, aqui tem muitas almas encolhidas, tem gente que definha debaixo das cobertas rotas, uma velha, esses dias, desaprendeu a falar, como era mesmo o nome dela?! Clo...Ro...Ma...
Não me reconheço mais. Diante do espelho, este cabelo, deus, este cabelo, este amontoado pele sobre os meus ossos, esta ausência de amor, este vazio absoluto, este fardo que é existir sem precisar.
E Deus, e a Fé, e o paraíso, e Jesus Cristo, e a cruz, e o sangue precioso, me esqueci de como era sentir a vida com o sol aquecendo o meu rosto, com os seus raios que vazavam os vitrais da igreja.
Hoje a única coisa que me aquece, é a minha própria urina no colchão por causa de minha incontinência.
Quero morrer!
Um dia destes achei que havia chegado a minha hora, ouvi vozes da cozinha aqui do asilo, parecia a voz do meu Marco, o meu filho amado, que dizia, “Aparecida, Aparecida”. Era grave a voz, era ele, eu achava. Levantei-me e vi sombras projetadas contra a parede, vi uma luz avermelhada e ondulante, talvez fosse o próprio Arcanjo triunfante! Não temi, meu coração se aqueceu novamente, firmei meus passos, apoiando-me contra a parede, estava pronta finalmente. Adentrei ao cômodo sombrio com um largo sorriso no rosto, minha redenção havia chegado.
Gritos histéricos reverberaram:
SURPRESAAAA!!!
Todas as velhas e velhos que eu detestava estavam lá, um bolo de aniversário no centro da mesa com duas velas acesas, (9 e 0), e na parede uma maldita frase sentenciando-me “desejamos a você muitas primaveras”.