Silêncio, tempo frio e um cafezinho

Pode parecer clichê, mera imagem burguesa ou apenas fetiche de aspirante a escritor, mas essa tríade realmente é especial, se não pela fantasia, pelo menos pela sensação de aprazibilidade que propõe. Dia desses, quando acabava de coar um café e sentia os pelos do corpo se arrepiarem com a brisa fresca que atravessava a janela, me dei conta do silêncio. Um estado raro numa segunda-feira, que durou apenas alguns instantes, mas que aconteceu de modo sublime. Eram umas 18:47h e havia acabado de sair do banho. Talvez isso tenha contribuído com aquela sensação e a produção daquela imagem.

Bom, o silêncio, assim como tudo que se apresenta de forma contrária ao seu não ser, apareceu e fez-se sonoro. É como aquelas coisas que só percebemos pelas frinchas da superfície ou algo como os espaços em branco que entremeiam as palavras de um texto. Travestido de uma fantasmagoria de ritmo zero, esse gatuno surrupiou-me o barulho por segundos preciosos entre a percepção da fumaça que saía da água quente e a queda das primeiras gotas de café que tocavam o fundo da garrafa térmica. Não deu muito para refletir sobre sua existência fugaz, mas a lembrança do vácuo auditivo permaneceu latente, tão forte a ponto de me fazer tal registro. Foi como se o tempo houvesse descansado por um breve momento. Ilusão. Era apenas um freio no frenesi que a poluição sonora do dia comumente produz. O tempo, tão mais silencioso ainda, continuava lá, quer dizer, continuava andando. Arrastando-se vagarosamente.

Em mais alguns instantes, a borra do café se apresentou a mim. Final de percepção daquela suavidade sonora. Ou melhor dizendo, daquela ausência de sonoridade. Enquanto ajeitava um pouco da bebida quente numa pequena xícara marrom, os ventos riscavam a atmosfera do cômodo, resvalando, em intervalos curtos, pedaços da minha pele seminua. Após me sentar de maneira confortável no velho colchão onde durmo e tomar os primeiros goles de café que acabei de coar, me dei conta de que a temperatura estava bem mais amena do que a algumas horas antes. Com pouca roupa, suor eliminado pelo banho e engolindo um líquido quente, pude constatar a presença do frio. Claro que de modo tímido ainda, pois se tratava de uma noite de verão numa cidade do nordeste. Mas, já algo que tocava o meu interior de forma circunstancial e munido de uma certa plenitude. Pude sentir o calor humano de mim mesmo com os arranhões daquela brisa fresca. Quiçá, acabei me dando conta da pele que visto todos os dias.

Por fim, acabei por tomar o café feito de modo atencioso, como sempre me esforço em fazer após uma longa e estressante jornada de trabalho. Acompanhado de algumas torradas, despejei a bebida fervorosa pela boca e garganta como quem recebe, sem questionamento algum, a hóstia em missa dominical. Realmente foi uma sensação diferente essa de tomar um cafezinho, parando para pensar no que não vi, e até no que não ouvi minutos antes. Levemente adocicado como prefiro, o breve amargor peculiar daqueles goles transmitiram a ideia do prazer que se encontra nas coisas não dadas completamente. Ou seja, daquelas coisas que são gozadas na sua fragmentação. Das negatividades que são convertidas em espelhos daquilo a que estamos habituados. Do silêncio que habita cada margem infinitesimal de barulho existente. Do frio que está logo atrás de qualquer onda de calor ou mesmo no descanso da chama. E, finalmente, no inesperado sabor dos simples saberes imperceptíveis da vida.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 19/01/2016
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