Experiência com o cogumelo mágico!
(7° relato)
(Um encontro com Deus e uma nova identidade espiritual)
"Quando experimentamos essas dimensões que estão ocultas à nossa percepção diária, percebemos, de maneira direta e irrecusável, o caráter divino da existência"
Stanislav Grof
Hoje senti vontade de chorar. Depois da experiência com Berna não fui mais a mesma pessoa. Indubitavelmente algo se transformou em mim. Nas noites seguintes pouco dormi. Entrar em um mundo paralelo e conhecer seus seres modifica a percepção de tudo que havia antes tão limitado. Conheci outras formas superiores de vida e posteriormente me tornei uma delas. Mas esse estado sábio que me foi resignado somente é possível através do cogumelo, porque Ele é a alma de Deus e usa a consciência como instrumento para mostrar a resposta muda e fantástica da vida e de tudo que lhe constitui imensamente.
Havia pensado uma seção de cogumelos apenas com as mulheres. Minha irmã Tainah estava realmente precisando de ajuda espiritual divina. Deixei Kaki (seria sua segunda experiência) e Gil (terceira vez, assim como Tainah) de sobreaviso. Pensaríamos num lugar conveniente e faríamos o encontro, as quatro, com a velha maturidade de entender o aprendizado e a humilde vontade de reencontrarmos o sagrado.
Meu pai sempre ansioso para tomar novamente, ligou sugerindo que tomássemos naquele sábado. Ele havia convidado seu amigo Dênio para provar e estavam já de combinação para irem à prainha de Cotovelo-RN, mesma em que tomei anteriormente com Berna. Como coincidiu com o encontro com as meninas, e não tínhamos transporte disponível, ajeitamo-nos e fomos todos apertadinhos no carro do meu pai. Tainah levou a filha de apenas um aninho (minha sobrinha Anauá). Partimos rumo à prainha semi deserta e já conhecida nossa. Antes preparei com suco de tangerina 9 gramas dos sagradinhos, de forma que cada um tomaria 1 grama e meia.
Chegando ao topo da falésia onde a natureza não economiza em exuberância, enchemos os copos, eram pouco mais das duas da tarde e meu pai fez uma breve oração. Ele pediu luz e amor, risos e harmonia e também que a natureza se mostrasse. Eu tenho um pouco de dificuldade de digerir e fui, como sempre, a última a esvaziar o copo. Descemos pela trilha até a praia, atravessamos as pedras e a fúria da maré cheia que quebrava nas pedras. Chegamos à ilhota a qual chamamos prainha, depositamos nossas bolsas num barquinho “DEUS É AMOR” e logo o costumeiro incômodo inicial manifestou-se em todos.
Sentada na areia uma espécie de sonolência confundia meu corpo com um forte tremor interno. Já muitas revelações mostram-se nos pensamentos e é preciso concentrar para não partir. O corpo deitado não reagia a qualquer vitalidade. Letárgica, olhando para o céu maravilhoso, vi novamente a renda energética sob as nuvens. Como se fossem infinitas flores minúsculas e em fractais. Gil ao meu lado tinha o rosto desfigurado, mais largo e branco. Podia ver também Kaki por dentro da pele. Havia umas veias pretas perto de sua boca e uma mancha escura ao redor dos olhos, possivelmente pela contaminação da nicotina, pois ela fuma exageradamente. Seu semblante era perdido e até um tanto sinistro. Seu rosto também estava mais largo e não me parecia feliz.
Havia um casal e uma criança desfrutando o lugar, mais ou menos perto de nós. Meu pai boiava no mar vendo de olhos fechados uma mandala perfeita na cor vermelho tornando-se alaranjado. Tainah mantinha a filha nos braços e não percebi modificação nela. Ao meu lado Dênio parecia não sentir-se bem. Eu não o conseguia ver internamente, estava bloqueado por um escudo de orgulho e suas infelizes potencialidades.
Tentei alertá-lo anteriormente sobre a importância de se estar preparado para tal experiência ancestral. A mente, a alma, o corpo e os princípios como humildade para receber sabedoria e paciência das virtudes, devem estar brandamente vivenciados. Tomar cogumelos não é a busca de sair da realidade, mas o portal de entrada para a verdadeira realidade. Não é um paliativo para esquecer as amarguras ou ativar as doçuras da vida, mas ser a vida. Não é algo recreativo para ter visões alucinógenas ou rir como em efeitos de drogas, é ser o riso e a lágrima espontaneamente emocionados. É o encontro realíssimo com Deus. Enfim, ele fez pouco caso das minhas recomendações de interiorizar-se, evitar alimentos pesados, orar e concentrar, principalmente se desfazer de sentimentos ruins e saiu de casa para a sessão após uma briga com a esposa, e não estando preparado para entrar no mundo dos seres mágicos, teve uma bad trip e quis ir embora.
Podíamos ver a feiura de seu semblante, os olhos pareciam saltar coléricos, a testa aumentada e as sobrancelhas frisadas lhe exteriorizavam uma névoa densa de negatividades. Ficou assim por algum tempo e por fim, depois da insistência de meu pai e da impossibilidade de sair dali sozinho, acabou voltando atrás e por sorte, desfrutou das maravilhas oferecidas com toda a graça e transparência que a natureza oferecia gratuita e graciosamente.
Gil agora parecia uma índia e assim sentia-se: belamente genuína. Ela me via velhinha, com a pele do rosto toda enrugada e eu me sentia exatamente antiga. Meu pai voltava do mar rindo muito e agora possuía uns olhos azuis, que nunca foram seus. Kaki e meu pai fumavam cigarro. Nesse estado o corpo desprendido de necessidades não hesita diante os desejos. Por pura mania e identificação a fumaça constante e desnecessária era absolutamente a única coisa que incomodava, porque não fazia parte.
Passado o desconforto inicial de transformação, levantei-me e fui caminhar com a sobrinha Anauá nos braços. Eu tinha a pele muito vermelha e com a mesma textura úmida do chapéu do cogumelo, de forma que me sentia em total possessão. O meu passo era mais leve como se não carregasse um corpo. Então percebi que a vida carnal, feita de ossos, órgãos e pele carrega o martírio do próprio peso, além da vaidade que lhe exige a carcaça, o ego que mantém a ilusão e a máscara inconveniente da impossibilidade de domar os fatos. A frustração é inevitável.
Passei pela família estrangeira que curtia o dia de sol. As duas crianças se interagiam, tentei trocar algumas palavras gesticuladas com a mãe do bebezinho. Segui até adiante onde estava meu pai, perto da abertura da falésia a qual Berna havia tido um reencontro com uma rocha. Entreguei Anauá ao seu avô e enfrentei a subida íngreme sem qualquer dificuldade. Estava ávida, atenta e tranquila, abracei a rocha apaixonadamente, senti sua presença em meus braços abertos e lembrei-me bastante de Berna, desejei que ele estivesse lá. Conversei alguns silêncios com a rocha, pedi desculpas por não a ter abraçado na ocasião anterior e sorri feliz e correspondida.
Estava suave e me sabia saudável e extremamente linda. Meu pai lá de baixo me admirava com esplendor. Dizia a minha sobrinha sobre a beleza da tia, e a linda menina me mandava beijos. Uma música vinda de dentro da mata ao lado me instigou a subir até onde fosse possível. A orquestra era sutil e diferente da música humana. Sentia-me em casa e permaneci ainda mais atenta aos sons, pareciam provir dos ventos. Uma força macia puxou meu corpo suavemente, deitando-o na areia. Não fiz objeções e quando a força puxou também minha cabeça, relaxei na terra vermelha e sorri. A areia envolvia meu corpo e umas ondas quentes na terra passavam pela pele aconchegando e massageando a alma. Havia os barulhos das pessoas na praia, das ondas constantemente quebrando, do vento comungado com as plantas, tudo era melodia, mas o som que vinha da mata eu me concentrava para ouvir. Escutei vozes animadas e entendi que estava acontecendo uma festa. Às vezes a música parava e as vozes silenciavam, em alguns segundos já era possível ouvir claramente a sintonia animada da festa dos seres da mata. Quis participar, procurei um caminho e não me foi permitido o convite; aceitei relaxada a condição de deixar fluir. De repente senti uma pressão por debaixo da terra como se algo quisesse se desenterrar, aconteceu novamente, achei engraçado e resolvi descer.
Na praia agora tinham inúmeras pessoas surgidas de onde ninguém percebeu. O céu lindo se revelava em cores intensamente esfumaçadas. O mar recuou bastante e até o final do dia permaneceu acuado, calmo e majestoso. Voltei saltitante para onde estava meu pessoal e, cheia de amor contemplei a todos. Sorria a todo instante porque me sentia uma entidade líder, detida de toda a sabedoria e compreensão. Era um sorriso brando e conciso.
Gil me chamou para perto dela, disse que precisava da minha energia leve. Joguei-me ao seu encontro transbordada de um amor maior, bem maior que eu. Ela me abraçou e seu corpo parecia derreter-se em meus braços. Falou que eu tinha razão quanto a estarmos dentro da flor de lótus, porque viu as flores místicas abertas na imensidão do céu. Reconheci “florzinha” (na segunda vez em que tomamos o cogumelo, Gil incorporou um espírito no qual fazia do seu corpo movimentos de flor) em seus olhos de vidro e exclamei entusiasmada; “Florzinha, você voltou!” Mas Gil estava pálida. Dei-lhe água e a tranquilizei com uma propriedade incrível de quem sabia exatamente o que estava por vir.
O mundo em que estávamos não era o mesmo que crescemos habituados. Uma abertura no mundo carnal para a vida dos seres mágicos expande uma verdade longe de qualquer denominação linguística. Atingia meu nirvana com um xamã de sacerdotisa. Conheci os seres de nuvens, de pedras, de areia, de ar. Reconheci a soberania do mar, do sol, da lua e das montanhas e falésias. Tudo é vivo e essa descoberta desencadeia mil pensamentos tão claros quanto irreconhecíveis. Tão desnudos e incontestáveis quanto surreais e raros. Tantas respostas absorvidas e estampadas no silêncio, e ainda obscurecidas pela ruína da humanidade, que se espalha como uma praga, cada vez mais perdida entre concretudes, construções e certezas inúteis.
Lembrei-me que ainda não tinha entrado no mar. Fui e havia uma deusa remando num caiaque. Uma sereia de biquíni, em pé e totalmente ereta. Tinha o corpo perfeito, o cabelo curto e era extremamente bonita, chegando a traspassar uma luz com toda naturalidade e brandura de passar. Em seguida chegou uma lancha com três pessoas e um som, parou perto de onde eu estava; uma loira também muito bonita, elegante, vestida de branco, e dois homens. Tinha um grupo de pessoas no extremo da ilha, em harmonia visivelmente bem resolvida. Estavam em círculo e jogavam água para cima, a linda mulher do caiaque que se chamava Ana (meu pai perguntou a ela e depois falou que sua beleza encantava a todos) desapareceu. Em vez dela, um homem não provido de menos beleza surgiu. Hora estava de bermuda xadrez, hora de sunga. Da mesma forma, velejando tranquilo o caiaque, tinha algumas tatuagens e o corpo jovialmente bem definido.
Eu boiava e vi o céu bem pertinho de meus olhos, quase dentro. Era como se tivesse descido, ou melhor, aberto a mim. Éramos só eu e o céu, com toda sua imensidão azul de infinita beleza. Depois me pus a brincar e rodopiar na água como uma criança no auge da felicidade.
Kaki chegou perto e quando olhei para onde o sol se põe, uma luz intensa se escondia atrás de algo, de forma que fomos entrando no fundo sem perceber em busca da misteriosa luz. Chegamos num ponto alto do mar, extremamente fundo e vimos a coisa mais linda brilhando entre o céu de cores. O sol estava deslumbrante e as nuvens eram todas feitas de seres. Pude ver claramente que ali existem vidas. As nuvens são seres vivos, bem como o sol e o mar, são deuses. De repente me dei conta de um fato inédito: Minha amiga Kaki não sabe nadar e nunca passa do rasinho. Porém ela estava ali comigo, e nós não fazíamos esforço algum, porque na verdade estávamos flutuando. Inexplicável! Nosso corpo sem qualquer movimentação na perna ou braços, livres como num voo, submerso naquela água toda que nos acolhia. Meu corpo girava sem que eu comandasse nada. O sol expandindo seus raios a todos os lados, as cores do céu. Abordei o belo homem que passava pertinho de nós em seu caiaque, “você está vendo isso, esse sol, esse céu?”. Não conseguia ver seu rosto, porque não havia. Era uma luz que me cegava, não enxerguei da sua face senão essa luz e ele passou sem responder, tão misteriosamente como tudo, e ficamos ensimesmada com a estranheza, além de encantadas com o universo. Principalmente era muitíssimo engraçado o fato de estarmos no fundo vendo o pessoal longe na areia, inacreditavelmente flutuando. Dênio e meu pai tentaram se aproximar e ficaram impressionados com a profundidade em que estávamos, explicamos que não era nós quem nadávamos, mas a sensação de estar levitando era fato indiscutível. Eles não conseguiram se aproximar tanto e voltaram para o raso, nós rimos muito com gratidão e respeito.
Depois de desafiar a gravidade do mar, viemos para mais perto de onde estava meu pai. Nós brincávamos e cantávamos festejando a estadia na casa de Deus. A lancha continuava lá, pessoas surgiam felizes, depois sumiam. Eu e kaki brindávamos a vida! O sol escandalizava de energia viva e beleza indescritível. Virei-me para ver o céu do lado oposto ao sol e tive um susto que me fez arregalar os olhos de assombro. Emudeci. A lua cheia branca imensa, em plena luz do dia! Todos gritaram abasbacados. Que falar nesses momentos? Tentar encontrar explicação não surtirá efeitos. Afobar-se no próprio entusiasmo é como duvidar da mágica naquilo que é natural. Depois ela sumiu e reaparecia quando bem entendia. Era perfeita!
Sai da água porque Gil ao longe e sozinha, não se sentia bem. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo com ela. Mas quem vê e sente a vida se esvaindo se angustia pela representatividade da morte. Ela sentia sua alma saindo pelos poros de forma que a consciência estava intacta, acordadíssima, enquanto o corpo padecia feito uma carcaça enferrujada pela ação do abandono e medo; “meu coração está parando, estou com medo de morrer!” me dizia com mais preocupação do que dor. Eu sorria brandamente para acalmá-la com o meu espírito. “Você não vai morrer, não agora. Florzinha quer se apossar de você, pare de lutar e deixe o cogumelo te guiar”. Não sei explicar o instinto sábio mas era o meu papel, minha função auxiliá-la. Ali, naquele tempo e espaço eu incorporava um xamã de sacerdotisa. As instruções e procedências eram naturalizadas em mim sem que eu soubesse como. Era como se tivesse num estado de personalidade superior que desconheço. Meu andar era diferente, mais pausado e firme. Minha voz era diferente. Uma propriedade de linguagem e incontestável argumento, eu de fato, compreendia tudo. Vi que Gil estava sem energia porque lutava, suas forças se esvaiam, seu semblante esverdeava. Chamei-a para pegar os últimos resquícios de energia do sol que se punha totalmente em breve. Coloquei a mão sobre sua testa e apenas respirei profundamente. Foi rápido, preciso e verdadeiro. Não pedi nada, emanei toda a calma de meu espírito para contaminá-la de brandura. O amor era o remédio mais sutil para fazê-la viver e acalmá-la. O seu corpo estava sendo apossado e logo ela ficou leve, dançando atipicamente mística, florzinha dança surreal porque não tem membros. E Gil foi a escolhida para receber seu espírito brincalhão e talentoso.
Gil não comandava um só gesto, um só passo. Era nítido que o movimento involuntário lhe causava a mais completa sensação de liberdade. Fiquei feliz ao vê-la dessa forma, agraciada pela sintonia. Girava entre as muitas pedras com uma habilidade infalível. Às vezes entrava no mar, mas a onda a fazia girar o corpo e sair da água. Era espontâneo e engraçadíssimo. Ali também seu sorriso era diferente, sua gargalhada, seu olhar, seu “andar” bailarino. Definitivamente não era ela, embora participasse ativamente da performance transcendente e fantástica. Todo seu momento ruim foi proporcionalmente compensado.
O sol se despediu, a lua iluminou de vez. O céu meio roxo, o mar recuou muito deixando um imenso pedaço de areia para nós. A ilha dos sonhos estava mais paradisíaca, deslumbrante, irreal, sublime, incrível! A lancha continuava lá, sem as pessoas que sumiram, com uma luz azul acesa. Apareciam grupos de pessoas felizes, desfrutavam do mar, e depois sumiam sem que víssemos de onde vinham ou para onde iam. Se aquelas pessoas eram reais, não sei. O que posso dizer é que estávamos em um plano espiritual elevado, estávamos dentro da flor de lótus, na casa de Deus. Dessa forma tudo é real, um convite do cogumelo para nos mostrar que a harmonia e o ideal não esbarram em limites lógicos. Depois, pensando friamente, creio que aquelas pessoas estavam na verdade, mortas. No sentido mais iluminado, claro.
Meu pai tinha crises de risos estridentes e bolava no chão, quase sufocado de tanto rir. Tainah carregava a filha que dormia em seus braços e repetia extasiada “ Eu não preciso de nada! Entendi tudo, você está vendo? Nós não precisamos de nada, hoje é o dia mais feliz da minha vida, eu estou completa e muito feliz mesmo!” Dizia freneticamente com um sorriso sinceramente largo, estava linda e se sentia linda. Kaki também estava empolgada sem entender tanta beleza, tanta magia. Eu dizia as duas sem excesso de alvoroço: “É para nós, tudo isso é um presente, vamos desfrutar!”.
Pela primeira vez deixava de ser observadora para ser moradora e líder espiritual. Assim me sentia porque estava incorporada de uma grandiosidade sábia. Eu tinha a maturidade de conhecer a todos, sem que falassem nada. Os seres superiores se comunicam em melodia e silêncio, porque estão tão atrelados que não se distanciam. Era curandeira, conselheira, mãe e detinha um poder que nunca sonhei conquistar. Fui caminhando sozinha pela praia em agradecimento emocionado e claro, totalmente purificada de existência. Estava na casa de Deus, tinha uma intimidade infinita com Ele, e uma propriedade maternal genuína de cuidado com tudo. Ouvia um som que vinha de dentro da vegetação da falésia, pássaros passavam cantando, o vento uivava e o mar completava a orquestra. Tudo era música e sincronia. Beleza e perfeição. Uma árvore branca lá em cima da falésia me chamava a atenção com sua vivacidade, sinuosidade e imponência.
Fui caminhando um passo lento e desarmado para perto da falésia e algo me chamou no chão. Tinha apenas um traço na areia, porém sabia que havia uma vida ali, podia sentir sua energia. Meu pé involuntariamente fez outro traço na areia. Surpreendeu-me delicadamente o surgimento de um rosto que concretizava a sensação de ter uma companhia ali, na minha frente e na areia. Sentei-me numa pedra de frente para o rosto e conversamos sem trocar palavras. Meu pai chegou perto, apresentei aquele ser de areia e ele ficou impressionado com a beleza da obra e principalmente a semelhança com o traço de Picasso. Ele é artista plástico e dizia incrédulo “ Foi Picasso quem desenhou esse rosto! Um belo e perfeito retrato cubista” . Expliquei a ele que nem Picasso nem Eu, mas um ser vivente e mágico daquele mundo lindo onde reina tranquila a natureza. Passamos a mão na terra e o rosto não se desfez, era muito vivo.
A lua alta e cheia, branca e redonda, linda e misteriosa iluminava cinematograficamente a praia. Ao redor dela o céu roxo e no fim da falésia uma mini cidade iluminada. As luzes dançavam e o reflexo na água do mar reluzia. Agora éramos só nós e um casal distante. A lancha abandonada no mar que a pouco tínhamos bem na nossa frente, sumiu. Ninguém soube explicar, ninguém entendeu como. Minha irmã chorava sem perceber, a emoção era intensa e a felicidade verdadeira. Mas nem todos pareciam tão entendidos acerca daquele presente maravilhoso.
Duvidei que alguns estivessem no mesmo paraíso em que eu estava, porque não compreendia suas atitudes ainda tão atreladas ao egoísmo e ânsia humanos, sem perceber que pensar em todos é manter o equilíbrio da vida e a felicidade plena só é possível se houver sintonia entre o todo. Dênio caçoava diante a estranheza do movimento de Gil. Meu pai compartilhava em explosões de riso, embora não houvesse maldade nisso. Mas também havia pouca compreensão e respeito. Kaki e meu pai fumavam cigarro mesmo por mania. Poluíam a casa dos seres puros sem interessar-lhes o incômodo alheio e sem dar-se conta disso. Dênio sentiu fome, também pelo costume humano de preencher o vazio interno, e procurou em nossas bolsas a comida que ele não havia levado. Tinha algumas frutas destinadas a Anauá, encontradas e digeridas por ele. Mais uma vez eu deixava de entender as pessoas, porque estávamos plenos e a fome simplesmente não existe, nem a sede, nem a vontade de banheiro, porque já somos saciados neste lugar sagrado. O lixo que fizemos até o fim do dia não foi recolhido porque “o papel dos pescadores é recolher”. Voltei lá e pus o lixo na minha bolsa. E o nosso papel, qual é? Questionava-me entristecida pela falta de coletividade e excesso de egocentrismo que insiste em perseguir até mesmo as pessoas mais inteligentes. Desfrutar cada milagre daquele dia, deslumbrar inesquecivelmente de tanta beleza, entrar numa sintonia tão bem feita onde vivem seres da floresta, seres de nuvens, seres de areia, seres de todas as energias; do sol, vento, mar, falésia, lua, horizonte... Tudo é vivo, mas a nossa consciência é meio arrogante, restrita e voltada aos próprios interesses insignificantes.
Meu pai dizia que o cogumelo é a melhor coisa do mundo e chamava para irmos embora, pois tinha um compromisso com o “caminho da graça” (grupo no qual se reúnem para discutir assuntos relacionados à bíblia e a vida, sem a máscara religiosa), e eu dizia a ele; “ Estamos no caminho, na verdade e na vida. Não tem lógica sairmos daqui porque seria como recusar um presente divino, e nada pode ter mais importância do que isso”. Dênio também desejava partir porque ainda tinha fome. Não entendia o porquê da pressa já que estávamos na eternidade. Ambos, porém, se entusiasmavam com a possibilidade da próxima vez. As mulheres, ao contrário, estavam sem nenhuma limitação de tempo ou uma mínima vontade de sair dali. Estar num momento como este em que vivemos além de ser um privilégio inestimável e milagroso, é também a essência da vida. Pensar na próxima etapa com um teor de ansiedade simplesmente nega e anula o instante presente. O real, o certo e palpável aos olhos. Não entendia como eles conseguiam desviar a atenção da graciosidade da verdade para o amanhã, que não existe. Quando se vive apenas não é preciso buscar nada, porque a sucessão de tempo é uma consequência mágica e providencial.
Kaki não se cansava de maravilhar-se com tudo. Tainah estava linda, leve e muito agradecida. Era o dia mais feliz de sua vida. Gil continuava dançando magicamente e sem comando próprio, sua sensibilidade absorvia o dinamismo do lugar.
Fomos enfim embora, a contra gosto das mulheres, mas eu estava plena, preenchida de graça e privilégio. Carregava a leveza da sabedoria e o doce mel da humildade. Entramos na trilha de volta ao carro e não conseguia não olhar para trás. Lá estava ela, a ilha sagrada iluminada por uma lua sem limites de poder e banhada por um mar gentilmente soberano. Algumas estrelas surgiam na noite e eu via as mesmas pequenas explosões de purpurina com infinitos seres azuis, parecidos com estrelas minúsculas. A onda se formava no rasinho, e antes de quebrar contra a areia, ficou dourada, como uma faixa horizontal de ouro. Reluzia e apenas eu via. Quando tentava mostrar a minha irmã que seguia a meu lado na trilha, a onda se quebrava e o dourado se desfazia junto.
Estive na eternidade e conheci o paraíso; Agora entendo a morte, que não se diferencia da vida. Os desejos mundanos são pura ilusão para encobrir o vazio da desconexão do Ser. A busca é sempre para tornar suportável a si mesmo. Ela limita o indivíduo a ignorar o instante, o presente. A ansiedade também. São todas ferramentas da ilusão, e nada importa porque não precisamos precisar. A natureza tem tudo, porque é tudo. Não precisamos de absolutamente nada, somos plenos no amor e parte do universo perfeitamente sincronizado na luz fluida de Deus: Uma verdade potencialmente soberana!
*Experiência vivida em 2013