Anotações em um bar (13-10-2014)
Agora se o corpo já não é mais corpo, eu sou essa forma disforme, espalhada no universo, como num sonho. Fui árvore, fui inseto, fui figuras que nem sei nominar. Mas quis ser dois, quis ocupar espaços vários e espaço nenhum. Quis que todos os meninos criassem raízes na terra. Parassem de olhar, de ser algo assim, algo exatamente e não exatamente qualquer coisa. Mas os meninos nunca souberam ser árvore. Talvez alguns meninos, mas esses não eram meninos desde o começo. Só tem forma de. Como eu. Por que a gente não pode ser só isso, essa coisa quando a gente dorme e não sonha, esse espaço vagaroso entre o tudo e o nada? Mas tive que ser antropomórfico, tive que me revestir de carne e química, e amor, e amar alguns meninos que nunca foram raízes no chão.
Fui um braço que tocou em algo, uma perna que roçou nos pelos de outros animais, fui pensamento e ação. Me envergonha, isso tudo. Mas também fui cabelos voando ao vento, olhos estrelados com o brilho da noite, respiração calma de quem quer ser, se unir com o mundo. Coube exatamente no espaço de um outro corpo que não foi meu. As meninas não precisam buscar ser raízes, elas fogem do próprio mistério de seus corpos feiticeiros, bruxas e deusas, seres disformes que só elas conseguem ver. Foi aí que fui engolido num ritual antropofágico pelos olhos-universo de uma menina. Me transfigurei em formas abstratas, abismo de outros tempos, e quis ser mulher, ser feminina, ser um segredo velado da noite.
E depois de ter sido fêmea menino, quis me disformar, me tornar um ser pós-existência, reverter os ventos, os espaços, as nuances. Quis me sabotar, perder os conhecimentos básicos, desaprender a andar, a comer, a respirar... lentamente. Como aprendi um dia tudo isso. Me desmultiplicar, me tornar meio, então um terço, e então nada.
Desconhecer de novo o mundo e desconhecer o que é mundo e logo após, a existência de algo chamado mundo. E assim foi, porque assim é a existência.