Playlist para te contar sobre ele.
Eu estou na cozinha, refogando a couve que eu nem sei se vou conseguir comer, porque não sei se estou com fome. Todas as pedras que foram jogadas em mim no trajeto do ônibus, eu engoli e por isso não tenho fome. Eu tentei ouvir as músicas certas, mas o aplicativo das músicas está com defeito. Eu te mandei uma mensagem há uns dias atrás, mesmo não tendo internet, eu sei que você recebeu. É claro que você não me responderia, isso é impossível, você sequer pode ler as coisas que eu te escrevo. Tudo bem, eu estou reformado agora, completamente esticado, cabeça para o zênite, agora sou pragmático, nada de olhos de cigana oblíqua e dissimulada, nem o contrário disso. Mas, secretamente, eu pensei ter te visto entre as sombras das árvores hoje, bobagem, mas eu voltei anos no tempo nesse instante, e, estranhamente, não pensei em nada. Sabe, somos muito incompatíveis agora, e tenho medo de lembrar, tenho medo de visitar seu apartamento e de encontrar suas coisas. Queria ter conseguido chorar, mas nunca consegui e agora é tarde.
Eu comi a couve, mas não tinha gosto de absolutamente nada, lembrei de Melancolia, mas eu não me importei, sinceramente. Acho que você não me perguntaria como ele é ou como eu estou me sentindo... como sempre, você falaria algo corriqueiro que aconteceu contigo, e tudo faria sentido naquele momento. E você me entenderia, ou talvez não, mas eu me entenderia contigo. E você me abraçaria forte de manhã cedo, o cheiro de café quente e de incenso, e diria obrigado, do fundo da alma. Mas quem seria grato pelo resto da vida seria eu. Claro que isso é uma coisa que jamais poderia durar, eu aceito sua passagem, porém, quando você realmente partiu, eu sentei na minha cama e escutei Asleep durante três dias desejando realmente que existisse um mundo melhor. E agora quando eu vi teu vulto na sombra das árvores do lugar que costumávamos passar os dias, uma pessoa me puxou para o lado e me fez vomitar todas as palavras que eu conhecia, foi bastante estranho e diferente. Eu senti que não podia ir embora, mas eu queria. Eu cruzei com meu amigo no caminho para a parada e ele sorriu, mas eu senti que algo tinha mudado na nossa amizade, ele disse que estava atrasado e que ia buscar um balão, e eu pensei de novo em mudar de curso, em fugir de tudo de novo. E, na verdade, todo esse tempo eu só tentei ouvir a voz dele de longe, mas era tarde e era terça-feira e eu sabia que isso era impossível. Você sorriria e diria, por favor, vamos no R.U. logo, eu tenho aula daqui a pouco. A pessoa que sentou comigo para olhar as árvores não falou diretamente comigo hoje, ela estava ocupada demais tentando resolver todo aquele quebra-cabeça que eu vomitei no chão, foi muito estranho. Eu estanquei as palavras e subi as mesmas escadas que a gente costumava subir conversando, mas o caminho estava muito escuro e pareceu que eu nunca tinha estado ali antes, eu estava vivendo uma nova vida e até agora pelo menos tudo tinha funcionado exatamente bem.
Mas quando eu vi os olhos dele pela primeira vez, tudo desmoronou na minha frente e todos os abismos remendados foram completamente soterrados. Eu me senti aliviado, pela primeira vez, como em Hallellujah, um triste suspiro aliviado, imaginando se um dia eu ouviria ele tocar, ele que diz que ama música e isso é perceptível em seus olhos. Sabe, eu achei que você, meu irmão de alma, era a única pessoa que seguraria minha mão e olharia através de tudo... e entenderia que só isso bastava, era impossível falar de coisas para as quais não existiam voz. Mas ele me olhou, e sorriu, e sinceramente eu senti que não era você que eu procurei esse tempo todo, mas ele. É cliché e brega dizer isso, talvez, mas não posso mentir para você, até porque agora não importa mais. Mas, de repente, essa pessoa que sentou comigo para olhar as árvores me lembrou de quem eu realmente era, e eu senti muita vergonha. Eu quis me esconder, mas não tinha onde. Eu me senti humilhado. E, na mesma hora, aquele garoto de tempos atrás passou por mim e nossos olhares se encontraram e foi muito estranho, porque eu não sabia que ele me conhecia. Eu me senti mais distante ainda. E sei que você riria, como quem diria: sim, sinta muita vergonha, sinta toda a vergonha do mundo, eu também sinto, é normal. E enquanto, na madrugada, depois de engolir a couve com gosto de cinzas, eu ouço aquele velho álbum do Nirvana, eu penso naquela história que minha amiga me contou quando ela ainda estava na cidade, de que os pais do Kurt proibiram ele de sair com seu amigo porque ele iria virar veado. E, mesmo naquela época, ele não conseguia entender porquê... e qual o problema... qual era a abominação em ser veado. Era uma forma de amor, afinal. Agora ouvindo come as you are e lembrando de tudo que ela costumava me falar, eu fico triste porque acho que ele não encontrou ninguém que entendesse ele na vida, ou talvez encontrou, mas a pessoa estava muito atrasada. Ele também tinha olhos de inocência remendada. Vocês tem um olhar parecido, sabia, mas eu só percebo isso agora, vocês três. Mas vocês são muito diferentes ao mesmo tempo, entende?
Eu sei que minha insônia vai voltar, e eu não posso fazer nada, só escrever. Então eu escrevo. Ela foi embora, comprou uma passagem pra cidade mais distante e eu me sinto sozinho. Ela me diz que quer voltar, mas sei que é pelos motivos errados. Você foi embora também, mas eu não posso pedir e implorar, como eu já tentei desesperadamente, para você voltar. Se lembra, existem coisas para as quais não existe voz. A pessoa que sentou comigo para ver as árvores pediu um café e me olhou nos olhos, mas passou por cima da minha existência e nisso deixou o café esfriar. O garoto de muito tempo atrás, eu achei engraçado na hora, mas depois quase me esqueci dele e ele, provavelmente, de mim. Meu amigo que eu encontrei no caminho da parada, eu queria saber o que aconteceu, mas acho que nunca vou saber. O Kurt ainda me deixa triste e algumas noites eu ainda penso nisso. E ele? Eu ainda espero.
Pode ser por qualquer coisa, eu só espero. E todo esse tempo em que eu ouço todas as músicas de novo e de novo, eu não me arrependo de nada. Você se lembra de quando eu te mostrei KIN... você não ligou muito, mas eu disse que, pra mim, você era o garotinho que foi levado pelos corvos. Acho que eu me enganei, eu era esse garotinho, e eu só percebo agora em REQUIEM. Os olhos daquela pessoa das árvores jamais poderiam ser suficientes, os seus olhos precisavam ser libertados, e, no fim, eu precisava encontrar os olhos dele e entender que, nas coisas que ele me disse, existia muito mais, sobre mim e sobre ele.
Eu andei pensando... você me deixa te dizer adeus agora? Eu acho que preciso abandonar teus corvos que me vigiam nas sombras das árvores, finalmente. Vou tentar entrar no teu apartamento de novo. Eu aceito tua liberdade agora, de verdade. Espero que tu não te importe que eu pegue a pedra que eu te dei e dê para ele um dia, se ele puder aceitar. Acho que você entende, seria um presente teu pra ele. Parece com algo que você faria tão naturalmente que não pareceria nada, como sempre. Não te esqueci, meu irmão de alma, mas eu preciso ver o Sol nascer, já está quase amanhecendo, preciso sentir o calor da manhã na pele. Espero que, um dia, ele sente do meu lado e para ver as estrelas e cante essas músicas comigo. É isso. Adeus.