Naufrágio retirante

Na noite escura do Largo do Arouche, as construções antigas se confundem com as almas fúnebres de andarilhos e homens consumidos pelo vício de caminhar. Por lá, estamos seguros: a ligação de velhos fios já foi feita para que haja luz e para que se pudesse anunciar - aquele prédio fora ocupado por gente humilde e trabalhadora. Na silhueta de uma mancha de bolor no teto do casarão, lembro-me da asa branca. Volta asa branca, volta, pois ainda não é tempo de seca.

Retirante forte, retirante severino como qualquer outro de vida e morte. Nas terras do sertão, retirante é mais marinheiro do que parece. Atravessa a terra dura, rumando ao litoral. Em alguns casos, como desse que vos fala, dirige sua embarcação rumo à um mar de pedras, contudo de oportunidades e de vontade de não mais ver seu gado morrer. Deixando para trás as Andaluzas e a Veneza seca do sertão de Pernambuco.

Mas lá se vai a asa branca anunciar a seca no sertão. Lá se vai a asa branca anunciar que é a hora do retirante vaguear pelo mar de pedras: é hora de se retirar do pedaço de teto deste severino e de sua gente. A anunciação ecoa pelas trombetas dos guardiões do juiz dos juízes, mas também o réu dos réus…

O bater das botinas no assoalho era a anunciação de que gente pobre hoje ia apanhar. O gás de pimenta e a bomba de efeito moral sangravam as narinas e os cacetetes num só ritmo, prosseguiam a bater no escudo dessa tropa horrenda a marchar.

A multidão resiste, quer assegurar a propriedade que lhes foi privada. Mas o que é o direito de oitocentos homens pobres frente a um só dono do capital? E as crianças choram, as mulheres gritam, feito leoas a enfrentar um exército horrendo de hienas a bater as botinas no assoalho para ao dono, já credor do Estado, a propriedade devolver.

Por que essa moléstia de destino a mim o senhor foi apregoar? Por que de tanta gente ingrata e pecadora, Senhor derrama tanta desgraça e pobreza a essas crianças? Santa Maria Egipcíaca, olhai por esses que não podem vender seu corpo, mas por vezes venderam sua alma e sua honra para a travessia do Jordão. Nessa balada dos necessitados, oh, Santa Maria, há sempre um homem de olhar duro a estuprar nossos valores.

Esses homens que já foram Reis de suas terras, na caatinga a se camuflar em cima de seu alazão. Filhos de Maria Bonita e Lampião. Presentes dos causos dos sertanejos, com os olhos brilhando como a fogueira de São João passando de pai para filho as histórias heroicas e medonhas.

É a hora do retirante pegar sua trouxa, arranjar outro buraco que o permita garantir seu ensopadinho de pedra no almoço e jantar sem esquecer de pagar no fim do mês a prestação do seu sorriso nos lábios, apesar da desgraça. Nessa terra de barões e coronéis, forjada na violência e na ambição dos grandes, os que da terra vem, bastardos e pagãos, são exilados em sua própria miséria. Mas sonha que passa…