Um menino, a pouco saídos dos cueiros, foi deixado num bueiro por uma mãe desesperada, a quem não restava nada senão largar seu infante aos cuidados de quem quer que fosse, ou dos deuses ou dos diabos. Sozinha, a criança berrava, e naquela mesma encruzilhada, por saber ou querer profundo, encontraram-se no mundo Deus e o Diabo. Deus abriu o papo indagando a quem aquela criança pertencera. O Diabo, na rabeira, disse que o infante seria dele filho, pelo olhar de escuro brilho. Deus, então, onipresente, veio com dois relâmpagos candentes a iluminar a noite. E o Diabo, sem receio, deu de mão nos arreios de seu cavalo e de fogo fez um açoite. Que Deus recebeu faceiro, lisonjeiro mandando os raios ao Diabo de volta. E seguiu-se o troca-troca de pancadas durante dias e madrugadas, até que numa tarde invernada, saiu a criança das fraldas e disse assim aos dois briguentos:
– Não me bastam seus unguentos e tormentos, sejam do céu sejam do inferno, a mim bastam os olhos ternos de um confrade de humanidade para que a claridade me inunde as retinas. Quero explorar enseadas e enfrentar barricadas sozinho, pois o caminho é daquele que o desenha. Se o Diabo meus cabelos desgrenha, Deus minha fronte projeta, forte. E não há sul nem norte que me guie, minha rosa dos ventos desvia de qualquer polo magnético, e gira até descolar do ar a indicar o rumo. Este é meu prumo e assim o serei, como súdito ou como rei, mas sempre com a certeza de que, sobre a mesa, somente as cartas que lancei.
E saiu, sozinho e grande, do tamanho de suas dúvidas e certezas. Deus e o Diabo sorriram, sabendo que ali estava só o começo da peleja.
Fábio Amaro
Enviado por Fábio Amaro em 16/06/2015
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