A pedra.. mais alta, ainda....
A menina se sentou em uma pedra muito alta... de lá poderia ver-se ( estampada na água..) assim como poderia ver um mundo de cima - além, ainda, da sua pureza e simplicidade...
E viu pássaros voando. E viu a violência do Rio, com seus traficantes e favelas. E viu o Cristo e o bondinho e todo aquele encantamento que só se poderia ver com o vento batendo no rosto.. e viu as suas próprias lágrimas caindo: uma a uma, na água distante dos seus sentidos...
A menina, pela primeira vez na vida, sentiu a dor de conviver com dois paradigmas: a sua imagem refletida... e o sentimento mais ofegante de todos os eus: " o medo.."
E o medo lhe saiu de dentro, sorrateiro, imenso e pleno, como também saem os amores e os ódios, em horas adversas...
O medo, meu rei.. é o que povoa os homens de pouca fé.
E se sentiu menina....
A moça viu na água rostos estampados em selvageria. Viu a menina, ainda sentada no colo do pai querido, contando as suas pieguices de criança e fazendo-o rir de tudo, porque era pai, e porque amava.... E viu a moça enamorada, por tantos poetas, músicos, meninos, farristas, tios, amigos... o amor pelo melhor amigo, que lhe durou a vida inteira.... depois os namoros turbulentos.. os finais infelizes....
E viu a mulher que estava. Assustou-se, olhou pros lados. Não tinha visto ninguém chegando....
Era ela! E pôs-se a observar os detalhes....
O rosto vinha em misto de sensualidade e dor... O rosto irregularmente diferente... Os cabelos curtos, rebeldes... coloridos em tantos tons, em tantas perspectivas.. condizentes com o corte,sempre irregularmente retocado depois do cabeleireiro, em casa.... Como se modificar fosse também uma forma de contestar os moldes da beleza humana....
As mãos eram enormes... Unhas postiças, num tom escuro... A sobrancelha enormemente remoldada... os olhos pequenos. A boca enorme, mesmo em seu silencioso tom natural... as mãos da mulher que não se sabia.
A menina de alma, moça não desvencilhada ainda e mulher de direito, jogou uma pedra da pedra... Era mais alto ainda. Era um abismo que nos separava... Era uma imensidão de mundos... o dela, tão ainda.. tão pequeno...
o seu, tão engolidor de tudos....
e sentiu medo. Não de ser mulher, mas de olhar o mundo pleno, lá de cima... e de confirmar que, em patamares parecidos, ela estava lá embaixo... com a sua pequena idade-experiência-mundo fechado, trancafiado em si mesma....
Sabia, definitivamente sabia que tudo haveria de mudar tão singularmente.... E que deixaria o domínio de si, pra ceder lugar a um sentimento em si tão maior que tudo.... E sentiu MEDO. Não de perder o juízo, os sentidos, mas exatamente, medo da calmaria e dos respingos de amor que lhe chegavam tão fortes, que se não fosse tão pé no chão diria que eram como cascatas. Uma chuva enorme de sentimentos e vontades e mais vontade ainda de estar perto....
A pedra... lhe mostrava o mundo e ao mesmo tempo a distanciava desse mesmo mundo....
E sentiu medo, de não corresponder a mais algumas expectativas... as suas, talvez as suas... Mas sentiu o amor... E ele veio, avassalando tudo.... que todo o resto de sentimento não passou de mera conjectura.