Destino: canavial
Sonhos e medos de quem trabalha no corte da cana-de-açúcar
por Tiago Cabreira
As paisagens da beira da estrada passavam rápidas pela janela do ônibus. As casas, animais, árvores, plantações e pessoas jamais serão lembradas. Ou, talvez nem sequer foram percebidas. Desde o embarque em Malacachê, Minas Gerais, até o momento em que pisou pela primeira vez em terras paulistas, João Francisco Rodrigues Oliveira não se lembra de nada, a não ser do retrato da filha de um ano e dois meses que carregava no bolso da camisa e das lágrimas que derramou copiosamente durante o caminho.
O mineiro, de 19 anos, saiu de casa com mais três primos à procura do progresso econômico. “Eu vim pra cá, em São Paulo, porque queria dar uma vida melhor para minha família”, conta o jovem. Durante os primeiros dias, ele procurou uma casa, ou melhor, um lugar para dormir. Depois amigos. E em seguida, um trabalho. João tentou o escritório de contabilidade da cidade, a padaria da esquina, o bazar no centro, o posto de gasolina, a mercearia, a prefeitura e a oficina mecânica, mas não havia emprego em nenhum desses lugares. O sonho de ganhar dinheiro tornou-se o pesadelo dos dias quentes e infindáveis no corte de cana-de-açúcar.
Hoje, para garantir sua sobrevivência e enviar algum dinheiro para a família, ele precisa acordar cedo para viajar no ônibus rural que o leva para o trabalho no canavial todos os dias. João sabe que o trabalho, nem tampouco o transporte para a lavoura, são seguros. O veículo não possui sinto de segurança, às vezes nem vidros nas janelas. Os faróis permanecem queimados e os pneus, quase todos recapados, não oferecem condições apropriadas para o uso. Faltam saídas de emergência, extintores de incêndio e um pouco de higiene. O acento mais confortável é o do motorista que dispôs sobre o banco alguns sacos de ráfia recortados. João sente medo, mas por enquanto não encontrou outra solução. “Fazê o que, né? O ônibus não é muito bom, mas o jeito é pegar com Deus e sair para trabalhar”.
O mineiro compreende que o trabalho na cidade exige um currículo que ele não tem. “Eu sempre tive vontade de estudar, mas não tinha um pai para me dar essa chance”, desabafa. Ainda criança, ele precisou trocar a escola pelo trabalho na roça. Hoje, com o rosto banhado pelo suor do trabalho no canavial, é possível verificar que a escolha não lhe trouxe vantagens.
Depois de falar sobre a infância, João permanece em silêncio. Com a cabeça baixa e o olhar direcionado para os calos nas palmas das mãos, ele fala convicto de que não vai ver a filha cortando cana. “Minha filha me dá força para trabalhar”, afirma, escondendo as mãos marcadas. O futuro da filha e o sorriso da esposa são as únicas razões que fazem João subir naquele ônibus sujo e barulhento todas as manhãs. Não há outra explicação.
O jovem tem muitos sonhos. Projetos que ultrapassam as cercas das plantações de cana-de-açúcar onde trabalha. Ele almeja trocar o facão pela caneta. “Vou escrever um livro sobre histórias de minha vida”, garante. Mas por enquanto, a única coisa que João consegue escrever são cartas borradas por lágrimas de saudade. Frases cheias de promessas e desejos que ficam apenas no papel. Planos impossíveis de se realizar. Histórias de provocar medo. Despedidas que fazem chorar. Talvez essas folhas de papel almaço escritas a mão sejam o começa de um livro com páginas marcadas pela dor. Não apenas a dor da saudade, mas a dor da falta de oportunidade.
Sem família
Enquanto João sonha com a filha, Carina Ferreira de Oliveira deixa o filho de três anos ainda dormindo ou, às vezes, aos prantos com a vizinha da esquina. Ela precisa sair cedo para não perder o ônibus que a leva até ao trabalho no canavial. Carina tem 19 anos de idade. Aos 14, mudou-se com os pais de Minas Gerais para São Paulo. Aos 16, namorou Paulo, o pai de seu filho e o homem que nunca mais viu na vida. Hoje, com os cabelos mal-arrumados e os olhos cansados pelo sono, ela confessa que nunca planejou trabalhar no canavial. “Meu sonho era trabalhar no mercado com computação, pois eu até sei mexer um pouco no computador”.
Mas o trabalho árduo na lavoura, não é o único sofrimento de Carina. Não ter tempo e disposição física para ficar com o filho também a machuca. No canavial não há diferença entre sexos. Todo o trabalho e trabalhador são iguais. Por isso, quando Carina chega em casa, depois das 18h, seu corpo pede banho e cama. No entanto, seu filho pede pai e mãe. E assim, as noites tornam-se pequenas demais para Carina ser mãe, pai, dona de casa e mulher. Falta tempo para Camila ser simples e unicamente ela mesma.
E sem perceber, chega a hora de voltar para a vida de canavial. O alarme do relógio avisa que é preciso preparar a comida, organizar a casa, lavar algumas peças de roupas, dar um beijo no filho e sair correndo para a lavoura. “Se não fosse pelo meu filho, eu não estaria aqui. Eu penso no futuro dele”, explica. Mas ao contrário de João, Carina teve oportunidades. Cursou todo o ensino fundamental, mas durante o primeiro ano do ensino médio desistiu da escola. Abandonar os estudos, porém, resultou no trabalho pesado na roça e nas despedidas sem fim com o filho. Ela ainda sente vontade de voltar a estudar, mas desanima ao ver que muitos dos homens e mulheres que trabalham no canavial têm estudo. “Conheço gente no canavial que tem o 3º grau e estão na mesma situação que eu. Formou pra quê? Pra cortar cana? Eu acho que não compensa.”
Cana e facão
O cortador de cana-de-açúcar trabalha 11 meses no canavial. Em dezembro, encerra o contrato de trabalho. A nova admissão pode ser feita apenas um mês depois, em janeiro. Durante esse período de “férias”, muitos pais de família precisam buscar outra forma de sustento, como colher laranja, arrancar mandioca e carpir. Os menos despreocupados, entretanto, passam o mês inteiro gastando todo o dinheiro do 13º salário no bar da esquina.
As usinas de açúcar pagam cerca de 25 centavos por metro de trabalho executado. O trabalhador recebe diária apenas quando é necessário carpir o terreno. Cada trabalhador chega a cortar de 100 a 120 metros de cana por dia, em média, R$ 300,00 por quinzena. Aluísio Abreu, 43 anos, trabalha no canavial há 22. Desde seu primeiro dia de trabalho até hoje, o homem garante que nada mudou no canavial, a não ser o aumento no calor do sol e alguns acessórios contra acidentes na lavoura (luva, facão, botas e óculos). O transporte precário e os baixos salários continuam a incomodar. Depois dos anos de experiência de trabalho, ele faz apenas duas exigências: “Primeiro, a gente precisar ter segurança no trabalho. Depois, salário digno”.
Aluísio nunca sofreu um acidente, mas já viu gente morrer no canavial. “Homem jovem não sabia controlar suas forças, acabou morrendo por trabalhar demais”, lembra. Denilson Pereira é colega de trabalho de Aluísio há 2 anos. Parece pouco tempo, mas já foi o suficiente para o jovem, de 22 anos, cair do caminhão e ficar afastado dois meses do corte de cana. Denilson não gosta de trabalhar no canavial. Ele conta que já ouviu história de dar medo. “O povo diz que as pessoas morrem de parada cardíaca, acidente de ônibus na estrada, caminhão pegando fogo. Graças a Deus, nunca vi essas coisas. Mas vi gente desmaiada na lavoura”.
Tudo vai dar certo
Não adianta ter medo. Todas as manhãs o velho ônibus pára no ponto do bairro e leva centenas de homens e mulheres para o canavial. Alguns deixam os filhos. Outros deixam a si mesmos. É o caso de Ismael e Ana Rodrigues. O casal trabalha junto no canavial. Todas as manhãs eles saem vestidos com calça, camisa manga comprida, gorro para proteger o pescoço, chapéu ou boné, caneleiras para evitar picadas de cobras e cortes das escapadas do facão, botas, luvas e óculos. Os cinco filhos ficam em casa com a tia. O casamento também. No ônibus, cada um vai num banco diferente conversando com o seu grupo de amigos. Ana tem medo de viajar no ônibus que a leva ao canavial. Ela conta que dois anos atrás viu um ônibus virado na estrada. “Não vi morto, mas vi sangue”, relata impressionada. Para Ana, a única segurança de que no final da tarde voltará a ver os filhos é um pequeno rosário e um crucifixo empoeirados e dependurados no espelho retrovisor do veículo.
O esposo, Ismael, confessa de que a vida no canavial não é fácil. No entanto, aponta que no norte de Minas Gerais, lugar onde nasceu, casou-se e teve os dois primeiros filhos, sustentar a família é muito mais difícil. Ele, porém, admite que seu maior desejo é voltar para lá. “Assim que a gente ajuntar um bom dinheiro, eu, Ana e os meninos voltamos para casa”.
Não vi nada
Assim como o casal Rodrigues, milhares de outros imigrantes sonham com o dia em que terão o dinheiro suficiente para abandonar as 8 horas diárias sob o sol e medo contínuo de sofrer um acidente na estrada ou no canavial. Claudinei Aparecido da Silva é fiscal de lavoura há três anos. Ele assegura que trabalhar no canavial não é perigoso. “Aqui tem muita segurança, a pessoa trabalha equipada e o ônibus não precisa de segurança”. Claudinei não usa o mesmo veículo que os cortadores de cana para chegar até o canavial.
No entanto, ao contrário do que afirma o fiscal Claudinei Silva, a Convenção Coletiva dos Trabalhadores Rurais de 2004/2005 obriga que todos os veículos destinados ao transporte rural coletivo ofereçam condições técnicas de segurança e comodidade. Valdemir Brentencanha, motorista de ônibus rural –função chamada popularmente entre os cortadores de cana de “turmeiro” –, afirma que o dever da empresa contratante é garantir a segurança no canavial. Requisito que determinar apenas luvas, boné, óculos, botina, porta lima, perneiras e mangote (casaco com mangas largas). “Pra gente, estrada é uma coisa, canavial é outra”, explica-se.
Para o diretor administrativo e responsável pelo trânsito no perímetro municipal de Engenheiro Coelho – ponto de partida de grande parte dos ônibus rurais –, Ismael Franco Oliveira, a responsabilidade sobre estes veículos é inteiramente da Polícia Rodoviária Estadual. “Aqui em Engenheiro Coelho não há polícia municipal, logo, nós não somos responsáveis por isso”, esquiva-se. O responsável pelo trânsito da cidade continua: “Na verdade, eu não sei como essa fiscalização funciona”.
Enquanto isso, a poucos metros da prefeitura, o Sargento Ferrão, da Polícia Militar, assegura de que não há veículos irregulares. Entretanto, faz uma ressalva: “Se há casos de veículos irregulares, eles trafegam longe ou em horários em que a ronda não os vê”. A Polícia Militar de Engenheiro Coelho possui apenas uma viatura para o patrulhamento em toda a cidade, o que não é suficiente para a população de 10.033 habitantes.
É fato! Dezenas de veículos rurais de transporte coletivo trafegam dentro do perímetro municipal de Engenheiro Coelho em desacordo com as leis do Código de Trânsito Brasileiro. Outro fato, é que a fiscalização pública não é eficaz, ou, é complacente com as irregularidades no trânsito. De janeiro a abril de 2007, as atas de ocorrência da Polícia Militar de Engenheiro Coelho acusam apenas um caso de ônibus em situação irregular. No entanto, basta andar pelas ruas da cidade, às 5h30 da manhã, para ver as filas de ônibus rurais que se formam a beira das estradas. Alguns com faróis queimados e pneus sem condições de tráfego, outros com poltronas sem sinto de segurança e janelas sem vidros. Em cada um, embarcam dezenas de vidas envolvidas pela esperança de um dia trocarem o medo de sair para uma viagem sem volta, pela segurança de viver uma vida que possa ser chamada digna.
As 24h de um cortador de cana-de-açúcar
4h00
As luzes da cozinha já estão acesas. A primeira tarefa é preparar o almoço. Uma refeição simples, como batatas, macarrão, carne e arroz. O feijão está pronto e reservado na geladeira. O próximo passo é encher a garrafa térmica de cinco litros com água bem-gelada, para acabar com o calor e evitar a desidratação. Depois, basta colocar tudo na bolsa, tomar uma xícara de café meio amargo e se despedir das crianças.
5h30
Hora de pôr o pé na estrada. Na esquina, os 48 colegas da turma já estão esperando o ônibus. Durante esse momento, as garrafas de água servem como banco e as conversas giram em torno de família, futebol e novela. Quando o ônibus chega, forma-se uma fila para entrada. Ninguém quer ser o primeiro, afinal o maior desejo era ser deixado para trás. Lá dentro, as conversar coletivas se encerram e permanecem apenas os pensamentos, os medos e o barulho constante do motor.
7h00
Próxima parada: canavial. Na chegada, o primeiro “bom dia” do fiscal é a entrega do facão. Depois a indicação do local de trabalho. E, mãos à obra.
10h00
Intervalo de uma hora para o almoço. Todos se direcionam para o ônibus, enquanto o motorista estende uma lona sobre o veículo e duas estacas fixadas no chão. O alimento que às 4h da manhã estava fresquinho, agora, frio e sem sabor, é engolido pela fome. Depois de comer, um cochilo ou uma conversa com os colegas.
11h00
É hora de voltar para o trabalho. O sol quente e a barriga cheia dão uma preguiça que parece não ter fim. O jeito é cantar. Cantar para esquecer que o facão parece ser o único destino. Aqui, ganha mais, quem trabalha mais.
13h30
Pausa para o café da tarde. Quase sempre esse é o momento para descansar. Às vezes, um lanchinho. Às vezes, um copo de água. Parada rápida, ou seja, um momento para respirar, lembrar dos filhos, da esposa, do namorado, olhar para o nada e ver o tudo.
17h40
Fim de trabalho. Hora de guardar o facão e voltar para casa. Os corpos estão cansados e as garrafas de água, vazias. Apenas os sonhos permanecem cheios de esperança. No entanto, a viagem ainda pode apresentar surpresas. Situações que não são bem-vindas: o pneu furou. Isso significa 1h30 de atraso para chegar em casa. Hoje, foi só o pneu. Mas amanhã...
19h40
Com o incidente, a viagem atrasou. A esposa ficou aflita com a demora. O filho não parou de perguntar o que aconteceu com mamãe. Os pais não sabiam o que fazer. Mas com a chegada, veio também o alívio.
21h00
Depois do banho e uma refeição, alguns minutos para os filhos, esposa, esposo, namorada, namorado, pais e amigos. Talvez alguns minutos para a televisão ou para o som. Mas o cansaço indica que o destino, agora, é cama