Terreiro

Jimi Hendrix toca em um bar quase sem ninguém, enquanto um casal dorme no sofá eu me embebedo junto a conversa dos outros. Era uma noite de sábado e ela estava morta

eu, aqui, junto com o alcool e com meu cigarro, não concebo a morte dela, não a sinto em minha pele como um fato e sim como uma ilusão, há tantos anos que não via sua face que o dia de sua morte se tornou um dia comum e se tornou fácil pra mim fechar os olhos e pensar que ela esta apenas caminhando em uma rua diversa da que estou. eu tenho uma necessidade urgente de fazer a autopsia de sua morte, de desenterra-la de seu caixão, de incorporar o seu espírito, eu sinto uma necessidade morbida de dilatar-me em seu sofrimento e me aproximar de onde ela de fato está

Hendrix continua, persistentemente, a tocar, se enlouquece em seus solos e taca fogo em sua guitarra, ele está em Woodstock de novo, mas aqui ninguém aplaude, de som resta apenas o bocejo do casal deitado, mas ele continua em sua música enlouquecida como sempre esteve e se assim está, mesmo depois de tantas décadas sob a terra, por que ela, que morreu a uma semana, não pode descer sobre o meu corpo e vir pra mim cantar? eu a invoco, eu a aclamo, mas tudo que escuto é silêncio, ela está, inevitavelmente, morta

No fim da noite, o preto velho também se cala, volta para o seu caixão e sua voz, pra minha memória, é então que eu percebo que ela agora se poe a escutá-lo, a morte existe e agora também pertence a mim, a morte me expulso do bar e me jogou aos braços da rua, aos braços de um mendigo vestido de palhaço que divide comigo sua maçã e sua sina, ele me rabisca de símbolos maias indecifráveis que fazem minha alma sua. Amanhece, estranhamente em São Paulo também amanhece e as pessoas me dão "bom dia", eu amanheço, mas ela, irreversivelmente, permanece morta