O Cúmplice

Hoje à tarde, caminhava distraída

Sem pressa, sem tempo

E sem ferida.

Eis que um cão ciumento, me despertou do olhar ao vento

Ladrou sem parar

Até o meu olhar ao dele alcançar.

Então calou-se

Se agachou, movendo a cabeça dum lado pro outro

Como quem procura uma fenda que o separa do universo,

da verdade.

Como quem impregna-se na lei, irrita-se,

Para provar a lealdade.

E em meio àquelas grades, seu focinho brotou!

- Me encontrou! - Era o que seu olhar dizia, - sou o cúmplice que procurávas, que àquele outro atormentava.

E como quem sorri um riso escrachado, pôs os caninos à mostra e deitou-se de lado.

Pensei: Cachorro safado! Ainda vivo, continuas atrevido e engraçado.

- Quantas saudades de você! - repiti algumas vezes em bom tom.

Logo o cansaço de minhas pernas avistou um degrau perpendicular ao início das grades do cão.

Com um tapa no chão, limpei o assento, ao passo que o próprio vento com isso me ajudava.

E o cão, nada...

Deitado agora com a cabeça a ignorar minha presença,

Esperando, pacientemente, minha tolice ser vencida,

Para que pudesse voltar a ladrar o meu conforto

Sem ter que pedir licença.

Aguardou!

Aguardei!

Então farejou meu coração no instante em que meu sistema nervoso

recordou o passado em aflição.

Foi como retroceder verdadeiramente, de corpo, alma e mente

Com intensos pulsos prendendo-me ainda mais ao chão

Me olhou...

E me assustei!

Como quem tem fita nos olhos, o cão reproduziu as cenas guardadas em sua história

Para me libertar da minha.

- E aquele outro, por onde caminha? - me pergntou.

Com tristeza, meu coração respondeu não saber, mas não por falta de querer.

E assim como se faz com um amigo de longa data, há muito não visto

A conversa foi rolando solta, e entre versos e prosas, salsas e merengues

Histórias dolorosas, com os pés já dormentes, me acertou a pele um chuvisco.

Seguido por um relâmpago que iluminou os olhos do cão

Falavam dentro do meu coração:

- Sou um cão, não um burro! Por que é que te dói tanto essa versão da verdade? Acaso pensas ser a dona da razão? Oras, qual é, afinal, o motivo de tanta lamentação? És mais esperta que isso, de longe te conheço, és tão esperta que poderias ser um cão!

(Mais um relâmpago seguido agora de um forte trovão..)

- Deixe o temor do trovão para o cão - chamou minha atenção de volta às suas declarações - sabes melhor que eu o motivo pelo qual deixaste de caminhar por aqui como antes, bem como sabes o que te trouxe até aqui novamente. É triste dizer, mas não foi pelos meus olhos brilhantes, tão pouco pelo meu humor saltitante que os fazia parar. PARE AGORA DE SE LAMENTAR! Não me engana com essa amargura relapsa que pendurou nos olhos. Estou velho, veja o cansaço nos meus. É tempo de partir, mas se não cumprir com meu dever, tranquilo não poderei ir.

Nesse ponto, meu coração ainda perdido, repousava na dúvida lançada pelo cão atrevido.

E com as mão ensopadas de chuva, tentei livrar os olhos dum bocado da alma, que escorria sem vergonha alguma.

Então retomou:

- Não posso mais com isto: É traição sem perdão, amor desvalido, respeito rompido, amizade sem lealdade... Há muito te aguardo, pra aliviar o meu cansaço. Aguardei-te paciente, no tempo que correu, entendi tua ausência. Não havia amadurecido o suficiente. Mas hoje tudo é diferente, estamos a um passo da liberdade, tua ferida ja cicatrizou e eu... com dor dente...

E continuou após o término de uma pausa infinita:

-Àquele outro libertei nesta manhã, sob o mesmo sol que tocava tua pele à pouco. Veio ele, igualmente louco, distraído, mas diferente de ti, sabia que trilhava um caminho conhecido. Fêz-se notar para que meu latido o fizesse parar - e quase que raivosamente, a si mesmo arremedou - "Não posso mais com isto: É traição sem perdão, amor desvalido, respeito rompido, amizade sem lealdade..." Ah, que lamentação! Quanta repetição de um mesmo gemido! - o cão disse espreguiçando toda a extensão de seu corpo, língua pra fora num bocejo que deixou teu rosto todo torto.

- E como o libertaste? - perguntei aflita.

- No coração dele, há muito não há ferida. Preciso ir, tenho pressa, então vamos logo ao que interessa.. Tu és uma cabeça dura, fica lutando com o tempo, num lamento sem direção. Passou por aqui, num estado de mulher, para me pedir perdão. Sem tempo, te perdoo e alivio: Não pense, não chore mais, não foi um sonho, nem abandono. Já disse, sou o cúmplice que procurávas, pra tua história perdida no tempo e nas contradições, mal entendido de um amor ressequido, precisa ser nutrido como outras plantações. Acalma teu coração agora, pois aquele outro, a quem outrora julgou desleal, por aqui caminha todas as manhãs, e a cada manhã o liberto pouco mais. Isso terá fim, pois ele vem, agora sem temor (como antes me temia), me acaricia e procura por você em meu olhar. Envergonhado, ponho minha cabeça a agachar. Mas o sol de amanhã será o nosso fim e o teu começo!

- Te agradeço! - respondi emocionada!

E o cão estampou no focinho novamente aquele riso.. deitou-se de lado.. e mais nada!

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Elis Maria
Enviado por Elis Maria em 17/12/2012
Código do texto: T4040504
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