Soturno
A aurora dissolve-se na mancha
vermelha alaranjada do sol
ressumando na manhã
esbaforindo a face triste do chão ressecado
a tremeluzir tudo o que é no horizonte
O menino nu come o barro queimado
das paredes da casa
Os dedos dessangrados
de cavocar as paredes mortas
pelo sol desgarrado
No infinito da paisagem desolada,
ondulando no ar,
galhos secos e uma cisma de esperança
A esfera rubra do sol soluça de sede
abrasando as pedras que assomam sobre
as estações desfeitas
em poeira vermelha e pegajosa
Nem inverno nem verão
nem outono nem primavera
Tudo a mesma poeira grossa,
o mesmo torrão rachado de chão,
as mesmas mãos vazias,
o mesmo olhar sedento para o céu
A vida passando sem pressa
morosa em se acabar
enchendo o vento de soluços
As flores e os frutos não se modelam
no barro seco indistinto
e na paciência dos quintais
que sangram o que um dia foi mar
As mulheres carpem os cântaros vazios
sorvendo dos lábios a sede
No céu nenhuma ave,
na terra nenhuma criação sob as sombras
dos galhos secos das árvores
A vida carecendo de sentido e de tamanho
Carecendo de saberes e outras palavras
tão uivantes quanto o silêncio que,
embaraçado nos gravetos
que rolam pela terra em fogo,
insiste em ser a trilha dos dias
amorfos e anônimos
onde o rio inexiste sem rumo
e só o vento quente tem vida
O menino nu carece do barro custoso das paredes
e de um olhar de esquecimento
que esqueça a sombra da tristeza
e do desassossego
que o tire da letargia destas terras
que evolam-se no ar esturricado
Chora o menino nos seus poucos anos
a tocaia que a vida deserta de si inventou
Suja os pés neste ar solitário que seca
a lágrima no rosto vincado pela terra
e pelo medo
máscara informe de poeira e suor
Ao longe a tarde crepita em brasas
tremeluzindo o braseiro de tudo a sua volta
O sol oscila num céu se dissolvendo
em vermelhos
O olhar incendiado pressente a noite
adejando portas e janelas
O dia mastigou o menino e deixou-o
nos braços magros da noite inerte que se rompe
nas lascas das paredes em soluços
A terra ressequida não dá cor ao noturno cantochão
com que a noite põe fim ao dia
A noite denota a imarcescível lua e um ror
de estrelas, colunas de um antigo templo,
de um antigo tempo, de antigos guias
poeira derramada nos milhões de anos,
trazendo para as noites seus olhos afeitos
a viajarem nos céus de poeiras também
A fome deita o menino e seus olhos cansados
Ouve-se soluços entremeados de suspiros
As indagações adormecem
nas ilhas sonâmbulas dos astros
e na impermanência do destino
A noite se aquieta
Silenciam as pedras que há pouco crepitavam
sob o braseiro urdido com as mãos coruscantes
de um sol que parecia brotar
do centro flamante da terra
O menino dorme
a sua infância exilada
Num canto escuro da vida
a casa geme ao passar do vento pelas taquaras
A lua, silente, alumia as veredas insones
Nestes cantos não tem flores nem jardins
Só a poeira grossa igual
a dos meses e anos anteriores
e as crassas paredes que se vai comendo
aos pouquinhos
conforme a carência e a tristeza
esquecidas, aqui, em todo lugar