Voltei para mim
Tenho algo a dizer. Sempre achei que não passaria dos 49 anos. Algo aconteceria e com 49 anos exatos eu morreria. Passei muito tempo pensando assim. Na semana a que seria minha última, vesti minha melhor roupa. Andei de azul (minha cor preferida) a semana toda. Dirigi por ruas desconhecidas, admirei o céu, flertei com os prédios da Avenida Paulista, bebi muito vinho, li e reli Fernando Pessoa e Machado de Assis, andei muito, como numa despedida de mim mesma. Não conseguia enxergar além da Avenida Paulista.
Fazia alguns anos que deixei de escrever. De alguma forma, as personagens que criei me ajudaram a sobreviver, a dominar os fantasmas que habitavam em mim. Escrava do capitalismo, fui me afastando aos poucos do que considerava mais sagrado e primordial. Fui ficando racional com o passar dos dias e meus versos e romances foram se ausentando de mim. Senti tudo se perder na caminhada, e não conseguia resgatar...
A temperatura começou a cair na Avenida Paulista. Joguei um casaco nas costas. Olhei para o relógio no pulso - hora em que recebi meu melhor presente. Depois de jantarmos, eu, meu marido e minhas filhas, num restaurante italiano, fomos para a casa da Cinara Andrade, a Ci, como é chamada.
Já tínhamos levantado todas as taças de vinho. Ali, na sala, eu a permiti que me roubasse um de meus instantes: li um de seus poemas, inacabado. Quando dei por mim, já estava mergulhada nos versos. Desnudei minha alma, recolhi pedaços lá fundo da intimidade. Tudo que me invadia, transformei em versos. Cinara disse: "Quando você para de pensar coisas negativas, você começa a viver."
Voltei para mim.