Elegia

Houve tempo em que eu voava

E não era poéticamente que eu voava

Que quando eu voava eu nem sabia o que era poesia

Que o meu vôo era a poesia

Que aquela criança estranha que voava era poesia

Hoje eu pressinto que era assim

Que a poesia nos olha com um olhar inefável da criança que fomos

Ou que continuamos a ser

Apesar desta luz artificial esvaindo-se lentamente da lâmpada leitosa e fria

E que é pelos olhos da poesia que o mundo começa a fazer sentido

Só que naquele eu tempo eu não sabia

Naquele tempo o mais espetaculoso que eu fazia era voar

Não era sempre que eu voava

Era de vez em quando

À noite

Eu só voava à noite

Não me pergunte por quê

Lá em casa tinha um destes baús enormes

De alças nas laterais onde pode-se guardar desde roupas

Caraminholas, leviatãs, pente de cabelo, recordações

A faixa branca da primeira comunhão, o medo da danação

Até os sonhos, que aparentemente, não nos servem mais

Pois bem, nas noites em que me dava na veneta de voar

Minha rampa de lançamento era este baú

Era de cima do baú que me projetava ao espaço

E voava

Voava inequivocamente

Como só pode e sabe voar um pirralho informe

Que nasceu comendo barro

E que sai do barro pra dentro das mãos de um céu de escura moldura

Pintalgado de estrelas azulzinhas como uma prece

E era lindo ver o bairro dormindo

Com suas ruas embaralhadas e amarelecidas pelas luzes nos postes afogados pela luz da lua

Eu gostava de ver lá de cima as luzes dos postes

Aquelas carreiras de pontinhos amarelos como velas acesas olhando a lua passar

Na noite dispersa

Na hora extrema das casas

Assimétricas

Repousando na noite quieta

Onde repousam os passos que carregam os dias pra lá e pra cá

A casa da dona Luiza

De tijolo à vista (não por estética, mas, sim, por falta de dinheiro para acabar a construção)

Com seu quintal encantado

Suas árvores frutíferas

As galinhas

Seu encantado porão onde moravam mistérios

Clandestinos fantasmas

Que habitavam o porão naquele mundo impálpavel

A casa de dona Luiza era, para nós crianças, o verdeiro Caminho Suave para o Egito e a Babilônia

Via, também, a coberto das nuvens mais baixas, a casa de dona Rosa

Que era um luxo pra mim e pras minhas carências de quase tudo

Casa grande de vários quartos

Tinha tv... planta carnívora a nos atrair para a sua cilada

Os móveis... vários e donos de tantos sonhos riscados a dedo na lama depois das chuvas

Mas, nemhum era páreo para o relógio cuco

De cima das minhas chinelas quase sempre em frangalhos

Eu ficava, estático, olhando o cuco marcar as horas

O meu mundo suspenso diante daquele som de bronze: cuco, cuco, cuco...

Lá de cima dava até pra ver a minha casa

Pequenina e irreparavelmente hermética na sua impotência de nos fazer parar de rir

Antes do choro convulso diante de mais uma criança debruçada sobre os olhos úmidos da dor

Enorme e inesquecível como são os sonhos e as esperanças de uma criança que voa

E que tem bolinhas de gude e piões no lugar do coração

A minha casa era de uma pobreza inata e devidamente atestada pelo poder público

Ou pelo público poder

Dá na mesma

Miséria não escolhe burocracias

Pode-se dizer que é fruto da mesma

Mas isto não vem ao caso

Estou voando

E quando vôo o mundo é perfeito

Não há misérias nem tristezas que me tire das alturas

Há só o silêncio noturno do vento passando em volta

Dos redemoinhos da minha infância

Um adjetivo que veio atraido pela luz dos postes lá embaixo

Me acompanha por um bom pedaço do vôo: deslumbrado...

Eu e ele

Pairando sobre as vidas

E dissolvendo com as mãos lançadas a frente a frágil escuridão solitária da madrugada

Em mim persiste a lembrança de ver lá de cima o campinho de futebol

Tão tranquilo em sua prateada geometria

Da onde se desprende um grito de gol de cada menino descalço que por ali passou

Da onde corre a lépida bolinha de gude quando não tem jogo de futebol

Infinito bairro de Americanópolis

Uma flor que subiu ao mundo a esperar por mim

Suas ruas suspensas, impensadas

Escolheu pra mim a rua Maria

A rua que era Maria e que atravessou a minha infância e a minha vida

A rua Maria de Lurdes coexiste em mim até hoje

E quando choro é pra lá que eu vou

Como um filho a devassar a tristeza transida trazida pelo vento

Nunca contei a ninguém que eu voava

Contar pra que?

Ninguém ia acreditar

E ainda era capaz de eu perder o "dom" de voar

Eu não sei dizer quanto tempo estes vôos duraram

Mas até hoje sinto o encanto e o espanto de que um dia voei

E lastimo que já não posso voar

Não é que eu não possa

Poder eu sempre pude

Mas, eu desaprendi

E tenho muita pena de mim mesmo

Pena do meu menino por ter lhe privado de avoar por aí

O tempo tornou-se enfadonho

Um tempo em que tudo é oleografia

Assim como a chuva que se repete todo dia,

Na mesma hora

No mesmo lugar

Chuva e suspeições aos cântaros

Chuvas longas estas

Porém raras

Atônitas

São chuvas em preto e branco

Minúcias solitárias dos meus dias

Desta certeza indubitável que um dia hei de partir

Assim como cheguei:

Sem saber da onde vim

Sem saber pra onde vou

Este será meu último vôo?

Não sei

Eu desaprendi de voar e não pus nada no lugar

Não aprendi mais da vida do que o que vi das janelinhas dos meus trenzinhos de lata

E não tenho certeza se vou me lembrar do meu último vôo um dia

Mistérios

E teimosia

Pergunto se tudo é engano

Que vai esfarelando

O tempo e a poesia