Texto para dois - Parte 3
(Na cama.)
Ela: Por favor! Eu vou ter que gritar!? Ou algum estranho vai ter que se atirar aqui dentro?! Porque o silêncio constante dessa casa deve incomodar até quem passa na rua. Fala, por favor.
Ele: Eu te amo.
Ela: Eu não quero ouvir “eu te amo”. Não quero ouvir de você as supostas coisas que eu gostaria de ouvir de qualquer pessoa. Quero ouvir de você o que você quer dizer. Quero ouvir o que me irrita, o que me faz perder o sono. Quero ouvir um insulto, um elogio, um gemido. Não me deixa ouvir o que me cansa, por favor.
Ele: Eu te amo.
Ela: Você vem da rua, entra calado. Você deita nessa cama e dorme ausente. O que você traz de fora que lhe ocupa tanto aqui dentro em silêncio. Não pode ser tão ruim assim, ou então é bom demais.
Ele: Você passa seus dias aqui dentro. Não sabe o que é lá fora. Fica aqui, se perde em coisas que nem sei quais são. Muda o rosto, muda a casa e quer que a gente mude. Como se mudando todo o resto que pouco importa você fosse mudar algo no que nos interessa mais: nós. Essa cama, não era vermelha?
Ela: Foi. Mas faz tempo!
Ele: Eu não trago nada de fora, eu nem mesmo mais me carrego comigo. Só o pouco que sobrou de mim nessa carcaça que reage aos anos sem que eu possa gritar uma alternativa. Lá fora um monte de gente cinza, todos eles com suas cabeças de nuvem que olham com olhos cheios de raios e lágrimas. Eles vêm na minha direção porque eu sou um poço fundo, vazio e muito seco. Parecem querer chover bem no meio da minha cara. Chover suas mágoas, suas mazelas, seus salários injustos, suas dores nos pés. Ninguém vê que no fundo vazio do poço estou eu esperançoso. Esperando um balde vir me buscar, esperando as contas serem pagas, meu gerente ficar contente, quem sabe um aumento, quem sabe um carinho da minha esposa, uma hora a mais de sono. E o meu vazio úmido vai ficando pequeno diante de tanta reclamação, e eu me envergonho de reclamar as minhas dores. Sabe quando a gente só quer se sentir bem? Como em uma leitura. Às vezes quero passar meu tempo bem. Queria que esse texto que choro agora fosse decorado. Queria tê-lo lido num jornal em uma foto-novela, daquelas que não se vende mais hoje em dia. Queria uma leitura leve agora. Tem aqueles textos maravilhosos. A gente ama primeiro a sua rima, ama o tom da fala, ama o som cantado que ele contém. Depois ama a pontuação e a posição de cada vírgula. Depois a gente ama a escolha de cada palavra. Até amar o significado o sentido leva tempo, porque seu sentido está tão bem guardado que só se encontra depois de muito amor em cada sílaba. Tem também aqueles textos leves. Esses a gente lê descontraído, ama na hora algumas frases, mas logo percebe que é tão simples que não pode revelar muito além do que se lê de imediato. Eu sou o texto leve, você o maravilhoso. Porque eu me contraio entre cabeças-nuvem e você está sempre altiva com seu ar inabalável. Porque eu fecho os olhos enquanto beijo e você testa todas as minhas reações. Porque eu não aprovo ou desaprovo política e religião e você discute assuntos variados. Porque você fala enquanto eu calado me encanto com a sua boca que se mexe. Porque você descansa de um amor em sono profundo e eu fico batendo dentes. Ou era assim quando nós tínhamos um ao outro. Era assim quando você não me dava a face para um beijo.
(Ele dorme, ela não.)
Ela: (para o espelho – quase rompendo em lágrimas, ensaia novamente) Eu quero lhe contar que lhe traí. Fiz isso por um orgulho suprimido. Não agüentei a monotonia do nosso relacionamento. Há tempos fomos um casal! O sexo era maravilhoso, mas você não me acaricia como antes, eu também já não tremo mais. Traí por um prazer próprio, por curiosidade. Acho que assim consegui um desafio para a nossa vida. Tenho agora um assunto polêmico para conversarmos. Além disso, transar com você depois de ter sentido outra carne foi mais interessante do que antes, ainda que tenha sido cansativo. Traí sua confiança. Tenho há muito desejado novidades. Eu prefiro cuspir tudo pra você friamente. Só assim eu falo o que sinto com a desenvoltura que preciso.”
Não! Por que a culpa também é minha! Eu nunca mais me joguei no seu corpo e agora que tanto quero não sei onde ele começa. (devagar ao corpo do marido) Porque simplesmente não acorda e me toma com violência? E que marcas são essas? Parece tão abatido! Respira com dificuldade? Não pode estar tão mais envelhecido do que eu. Não pode!
(Ela dorme na cadeira do espelho.)