Texto para dois - Parte 1
Comentário do autor: Então pessoal, essa foi a primeira tentativa de um texto para dois! :) Algo teatral. Vou postar em partes... As rubricas estarão entre parenteses. Vão em frente!
(A personagem está sozinha no quarto. Fala consigo. Interage com a cama, com um pequeno baú e com um espelho)
Ela:
O espelho não me nega que envelheço, tampouco lhe nego meu descaso. É mais fácil esquecer que o tempo passa a perdê-lo discutindo sua ida. É um absurdo! Se bem que é bom discutir qualquer absurdo naquelas horas noturnas em que todo o esforço se foi e o corpo fica molinho jogado na cama ou quando amanhece e a luz invade o quarto pela janela iluminando a face. A cara da gente sorri o riso de uma noite inteira de prazeres.
E eu definitivamente não gosto desse espelho. Gosto mesmo é dessa cama. É macia, quente! Fora! Não é mais! Se eu olhar bem aposto como vejo a minha face refletida. O lençol juntando dobras sobre sua superfície amassada deve estar insinuando que envelheço. Talvez não goste tanto dessa cama, está começando a ficar lisa, dura e fria.
Houve um tempo em que ardia; acho que essa manta era vermelha.
Cada coisa estranha na cabeça. Fico assim menos da solidão da casa que da minha própria quando deito. Perco a mim mesma em pensamento enquanto durmo, tanto assim que sonho coisa alguma ou alguma coisa que não valha a pena ser lembrada. Prefiro não lembrar o que passou pra ver se esqueço o que o espelho aponta.
Se pudesse esticar essa cama. Refazê-la de algum jeito, talvez se puxasse em uma ponta, mas teria de consertar a outra. Se distorcesse um lado teria de contorná-la toda para ajeitar o outro. E se ficasse reta ainda poderia me lembrar a superfície lisa do espelho, mas a novidade vale o riso?
Trancaria facilmente esse rosto no guarda-roupas; esconder o espelho pode ser uma fraqueza e assumi-la uma humilhação, mas não valeria ocultar o vulto?
Está trancada no baú as muitas horas da minha vida. Na verdade já tranquei muito mais calada no jantar ou inerte numa transa, mas está aqui o baú, inconteste, a justificativa, quase um pedido de desculpas. Em seqüência a minha vida. Se pudesse esticá-la. Refazê-la de algum jeito. Se a puxasse por essa ponta e salvas as distorções consertasse a outra, contornaria toda ela para provar um novo gozo. E se ele só me lembrasse do passado, assustar a calma vale o risco?
Está se dobrando aqui a minha culpa, acumulada pra que não me esqueça, ta ali aquele lençol que me condena. Só mesmo dobrado o tempo que coube no baú pode tomar a minha face. Se pudesse de algum jeito esticá-la; refazê-la qual à cama. Mas teria de ser forte e rápida para puxar as duas pontas. Sem distorções que me deixem novas marcas. Impecavelmente trabalhada. Para compor detalhes novos e um desfecho empolgante, valeria estapear a minha cara?
Esticar assim espelho:
(voltada ao espelho, ensaiando com calma a sua fala)
“Quero lhe dizer algo. Eu preciso fazer isso com firmeza porque há muito você prefere não me ouvir e ignora as minhas tentativas. Quero que você se sente e preste atenção em cada sílaba. Atente aos detalhes e não pisque. Apenas ouça, sem interrupções.
Quero contar que lhe traí. Fiz isso por um orgulho pessoal que não suporto ter de suprimir. Não agüentei ter de me submeter à monotonia do nosso relacionamento. Há tempos não somos um casal. O sexo tornou-se enfadonho, você não me acaricia como antes, eu também já não sinto tremor com o seu toque. A verdade é que de todas as desculpas essas me pareceram as melhores. Traí por um prazer próprio, por curiosidade. Acho até que assim consegui um desafio para o nosso cotidiano insosso. Tenho agora um assunto polêmico para tratar e confesso que transar com você depois de ter sentido outros prazeres foi no mínimo mais interessante do que antes, ainda que não tenha deixado de ser cansativo. Traí sua confiança e não foi a primeira vez. Sim, foi a primeira em que toquei outro corpo, mas não foi a primeira em que tive esse desejo. Tenho há muito desejado novas posturas. Novas aventuras. Novos assuntos. Eu prefiro que meu discurso seja rápido, objetivo, direto. Desculpe a postura firme e fria. Só assim eu falo o que sinto com a desenvoltura que quero. Entenderei se quiser deixar a sala agora, entenderei se quiser deixar o casamento. E posso compreender se ao contrário do esperado você quiser ficar. Ainda que com estranheza, pois há muito você esqueceu o sentido de surpresa e inovação. Então, decida-se.”
(com sinal de negaçãoa ao espelho)
Rude! Muito frio! Rude! Muito Rude!
Até porque houve um dia em que ele trouxe flores. Estávamos sérios por causa dos constantes problemas financeiros e ele trouxe flores e chocolates. Clichê sim! Mas lindo! Quis colocar música no rádio, me tirou do sofá para uma dança. Eu ignorei as flores. Comi talvez uns dois chocolates. Irritei-me com Tom e Vinícius e recusei a dança a ficar com meu telejornal favorito. Que horrível é ter um programa favorito na televisão, é como assumir que não sei mais falar! Talvez eu também esteja um pouco ausente e olhando pra você agora, espelho, eu quase não me vejo de verdade.
As sobrancelhas retas – quase sérias. Não, quase alegres, porque sérias elas sempre estão. São.