Uma poetisa em minha casa

I

Ela passeia pela casa. Uma pola assustada, vestido cetim branco. Não a posso tocar. Meus pensamentos passeiam em seu corpo até o ponto onde começo a lembrar do homem que fui há quarenta anos.

Senta-se na sala defronte a janela onde todo o azul do céu, disfarça-se pela renda verde das cibipirunas. Seu rosto maduro é o fascínio da tarde que se declina em afagos pelo soprar da brisa fresca. Nunca poderia alcança-la pois seus olhos estão além. Apenas observo.

Quando a tarde cai completamente ouço pela casa;

A porta;

A TV;

A janela;

e sempre, sempre, a estande de livros antigos, são as vozes dela pelos cômodos bem arrumados de madrugada.

Quando passa por mim sorri de olhos fechados. A boca meiga pronuncia novamente o meu nome e parte em direção a exclusão estratosférica dos sentidos. - Só faz ler. Dizem as vizinhas. Enfim, dorme ao lado da estante de livros.

Quando acorda, perambula com o vestido arrastando a barra pelas calçadas descalça. Há muito deixou partir a mulher e sossegou poeta nos seus inesgotáveis livros de cabeceira.

II

Do cós abaixo um palmo só até os joelhos dela, são meus encantos. Algo que fui antes de si desmembra-se em veludo.

Penso que n’algum poema Neruda deve tê-los em apropriados versos, pois eu, já me não lembro, de como formar uma única palavra para acomodar nos versos, o poder deste pedacinho de céu em ti.

Toda a sintaxe de uma vida, lançada ali sem nenhum receio. Uma delicada cicatriz da infância denuncia talvez, molecagens, travessuras da criatura, hoje mulher feita de rimas para poesias. E ali finda o cós por guardar austero toda a doçura de sua pele e além mar

Escravo imploro, por todo conjunto, de um só golpe, mesmo que por capricho, mas que seja, fatal.

III

Amanheceu o sexto dia em que ela surgiu em minha casa. Seus olhos no horizonte, sempre e sempre.

A casa vai retomando o ritmo sem hospedes, sempre a mesma sempre.

As horas pelos vãos e ela caminha através da casa, bichinho arisco de longos cabelos, meu fascínio.

Ao adormecer inicia um desafio de grandes dimensões. Todas as noites em pavorosos pesadelos psicóticos. Tudo começou no quarto dia, um soluço de saudades, um rosto distante.

Agora já sem nenhuma esperança de que ela volte a ser a mesma, de antes, que eu conheci n’outro mundo calço as esperanças de hierarquias e bebo um Porto, aportado para sempre a seus pés.

– Então você me conheceu e veio para este mundo? Disse-lhe um menino. Ela sorriu, o sorriso de quem tem poesia nas pontas dos dedos e continuou fotografando as horas.

VI

Deito.

Ao meu lado,

Em pé,

Compõe uma prece.

Sobre os pés agasalhou a lã de tecelão desconhecido.

Admiro sua pele e o cabelo loiro.

Que seria destes sorrisos falsos os quais lhe dou toda noite?!

Ao receber, rebento angelical,

em minha face, breve beijo “bixado”

juntinho ao murmurado “boa noite”

ouço meu pobre corpo soluçar pretéritos

e castigado pelo graal do tempo

assisto-a partir para o seu quarto e

somente da chave estalido austero

na fresta do velho carvalho

encerra mais um dia desta vida

que de um quarto inteiro dos amores

jamais alcançou as chaves.

Através do concreto armado, ouço,

ressonas, e os sobejos de um coração

sentem cada som distante, qual joalheiro

em sua lida, guarda preciosa gema.

Que seria destes sorrisos falsos

os quais lhe dou toda noite

sem a sinceridade

de sua eterna recusa.

V

E assim como veio também se foi.

A casa ficou toda amarrotada, tais papeis

onde escrevias, escrevias vozes infindáveis

das vozes despidas dentro de si.

O quarto passou por ela

Juntamente os livros, as roupas de cama

E o velho diploma pendurado no esquecimento

Todos passaram por ela num atmo.

Agora buscam a constância do lar

Num aposentado sentimento.

E lamentam todo o restante de suas vidas

Sem ela.

E assim como veio também se foi.

Se pudesse poderia compreender em tempo

Que não era um doce a espera de bocas

Mas a própria espera, entidade simplesmente.

Quando as malas se desfizeram da casa

Todos os velhos galhos da cibipiruna acenaram,

gotejando pequenas lágrimas amarelo-ouro

repintando seu cabelo.

Na calçada deixada

qual marcas de carnavais, confetes,

tapetes de mini-folhas

marcados por seus pés delicados,

testemunhas.

E ali estava aberto o portão

fechando-se para mim.

Quanto tempo (pouco penso), ainda viva,

viverei para odiar o velho portão pela desonra

de tê-la deixado partir.