Chove lá fora... (EC)

O calor assombrava embora nem sombra houvesse. Nunca fizera tanto calor assim, as águas do rio baixaram a níveis nunca vistos. Os cães mudaram- se para as margens secas em busca de alívio para a sede e só voltavam para casa quando sentiam fome.  Ficavam por ali, espadanando na água para diminuir o mal estar. Parecia que uma ceifadeira passara renteando a vegetação como os cabelos de um recruta. Tudo limpo, mas era só ilusão. Qualquer ventinho sem vergonha levantava nuvens de poeira que a faziam tossir e espirrar. Chegou a pensar que teria que partir embora nem tivesse ideia de para onde ir já que voltar estava fora de seus planos. Sentiu medo quando viu o fogo se aproximando por várias vezes, imprudência dos fazendeiros e/ou dos passantes irresponsáveis. Os esqueletos das árvores lembravam o tempo todo que os pássaros tinham partido e também os miquinhos ladrões dos pomares da vila. Todos foram embora, só ela ficou e seus cães emagrecidos pela escassez de sua despensa. Era impossível dormir, era impossível ficar acordada. Por horas e horas fitava o céu azul em busca de nuvens escuras que anunciassem o fim do pesadelo, mas nem nuvens havia quanto mais as que anunciam que é dia de limpeza no céu. Estava brava com São Pedro, um santo bem preguiçoso, que deixava tudo arder de sujeira só de preguiça de dar uma boa lavada lá em cima. Era assim que imaginava o céu quando criança, assoalhado por grossas tábuas de madeira mal encaixadas, por onde a água escorria atingindo a Terra e levantando um cheiro bom que descongestionava suas narinas. É dia de limpeza no céu, dizia a avó quando ouvia São Pedro arrastando os móveis que soavam como trovões. Noite após noite já há um por par de meses era sempre assim: ela se deitava e levantava o tempo todo, abria a janela em busca de nuvens, mas só via as estrelas brilhantes que dela zombavam. Ora direis, ouvir estrelas, pois ela ouvia e o que ouvia não era nada animador. Vá embora, sua maluca, o que quer provar ficando aí? E assim ela acabava adormecendo para acordar para mais um dia de tormenta. Aquele dia, aquela noite não tinham sido diferentes. Mas quando ela dormiu sonhou que ouvia móveis sendo arrastados e gostou do barulho que ouvia. Lembra-se de no sonho ter pensado que São Pedro preparava o salão principal do céu para uma grande festa e ficou toda animada imaginando um jeito para ir também à festança do céu e no sonho sonhou que usava um traje de gala vestida como uma princesa, uma fada, usando uma roupa verde,furtacor,  com todos os tons  do verde. De repente os sons fortes da arrumação do salão acabaram e ela começou a dançar cadenciamente, ao som de uma música suave, como uma cachoeira escorrendo  por sobre/entre as pedras, um regato correndo mansamente enquanto beijava as bordas da terra ressequida. Então ela abriu os olhos e prestou atenção ao mavioso som da noite. Pensou: chove lá fora. Fechou novamente os olhos e começou outra vez a dançar, a dançar e a dançar... Seria tão bom se fosse para sempre... Dançando e espalhando com sua saia rodada todos os tons de verde pelo imenso salão e a água escorrendo por entre as gretas do assoalho.


(Esse texto é parte do romance, A Mulher Ensombrada e também do desafio do Encanto das Letras.  Leia os outros textos) 


 
 
 
 
 
 
 
 
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