O VIAJANTE DA ALMA / Dedicado à memória de Ademir da Costa Ramos- Coco

O anjo nasceu ontem,por isso ficou velho e ultrapassado.Quando indagado nas preces das beatas querendo agarrar-se a qualquer esperança na vida,batia as asas para fora da igreja.Assustado,procurava repouso nas ilhas que se formavam nos homens.

Meu coração bate a marcha dos suicídas.À frente dele vai a saudade de um dia de calor e um vulto moreno refletindo a tristeza.Ah,as velhas canções!Os anos ficam distantes,cada vez menos sinto as lembranças e o corpo vai morrendo devagar como uma herança maldita do tempo.Atrás ficam as mulheres que amei e que nunca foram minhas.

Numa casa erguida à beira de um precipício,mora a menina encantada.A loucura convida-a a um passeio com o vento nos cabelos dos suicídas.Oh dor que ela não sentirá nunca!Tão segura no seu quarto de suspiros...ela repousa,espera,confia,enquanto o abismo cresce no inconsciente da casa.

É assim mesmo,eu sei.Prefiro não pensar daqui a duzentos anos.O que farei até lá?Cada um carrega a sua dor oculta.Porque fugir do trágico?porque calar?Todo mundo esconde a vida,acham que podem ser felizes por algum tempo,vivendo sob falsas opiniões que têm de si próprio.A luz de fora evitou a surpresa da visitante branca de cal.Trouxe o silêncio a estrangeira,e o respeito como acompanhantes.Quebrou o dialogo final e nos tornou viajantes de um mesmo barco ligeiro remando à uma única certeza.A gente só sabe que alguém existiu,mais nada.

Todo mundo junto,etiquetados:"Passa!Não passa!Separa.Alto demais,sério demais,separa.Leva este,leva aquele,volta o sr. de bigode e sua filha...Não,deixa a filha,trás a mãe.Pula aquele.Nome?!Pra quê?!Leva!"O trem tem pressa."Separa,passa,não passa.Tire o ouro,queime a casca".

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"Senhor,eu sou formado em medicina,posso ser útil".

"Quem vai e quem fica não precisará de médico,o trem tem pressa,leva!"Toda carne volta à formação original.Até mesmo os ossos somem para depois retornar em história.Tudo pertence ao tempo e espaço.O corpo para a terra,a alma para Deus.Nós,só a nós mesmos pertencemos.O que vale é o que somos e a verdadeira busca da salvação só termina quando descobrimos nossa origem.

Pulsar,esta palavra aberta diante de mim.Pulsar o coração,o desejo,a raiva,o medo.Pulsar com gestos longos e suspiros.Pulsar a vida de modo tranquilo.Não pulsar,o fim de tudo.Todos partem para algum lugar,vida de mão única.Num quarto de azul-tranquilo um ranço de luar denuncia a febre sob a túnica.Quem veste a máscara julga-se íntimo do corpo estranho ao lado,onde o vínculo esponsal também parte.Ao agrado de um futuro paraíso todos vão em busca do sonho.Indeciso,permaneço,fiel aos febrís delírios e entre soluços e lágrimas emudeço.Porque estás longe falta-me a intimidade,tão perto não te conheço,nem sei se és bela ou feia.Disseram que és dama,outro,que és cavalheiro.Teu rosto,branco como tua hora,será pra mim uma surpresa?Mas se ainda é tempo,deixe-me reunir os amigos pra evitar a surpresa qusando tua máscara cair.Mas se ainda há tempo,deixa-me a sós com meus temores,porque se ainda estás longe não carece ter pressa.

No vão das telhas a luz que entra encontra-me adormecido.No calor da noite as idéias queimam.Há uma luta fenômenal neste quarto provinciano.As vozes que vêm de fora

trazem versos de infância:"A primeira namorada era vidro e se quebrou".Bem-vinda,que não te espero,ainda que luto,bem-vinda seja!Como alguém que teme ser descoberto,ela chega invisível,tocando tudo!"A segunda namoradaera fogo e se apagou".O amor é agulha disparada em direção ao corpo.Julgamos-o flexa mitológica e o tornamos suportável.Longe,a fronteira divisa entre um e outro amor revolto.O que mata e o que inicia ainda não é amor.

Ao grande mar,um marinheiro ainda doce se aventurou a buscar quem quer que fosse a rainha dos seus sonhos.Partiu alegre,nas vagas cantarolando aos olhos tristes do mar:"Canção de barco,canção que vem buscando ondas num vai-e-vem,por que não buscas um pouco além um jeito novo de ver meu bem?Canção de barco,canção de proa,por que navegas,por que não voa num mar de nuvensque po peito entoa,pra ver meu bem sorrindo á toa?Canção de barco,busca meu bem,meu peito é vago,vai sem ninguém,navega em ondas e morre além..."E o marinheiro encontrou dentro de uma concha do mar uma sereia encantada transformada em canção.Naufragou-lhe o coração e nunca mais retornou.Dizem que quem encontra uma concha arremessada á beira mar pelas ondas,e,se põe o ouvido e sonda a canção que vem do mar,ouve apenas o lamento do amor triste e solitário.E o mar num vai-e-vem:"Meu peito,onda que vai,que quebra,que morre além!"

Não tem importância ao clarão da noite se quem passa volta ou quem volta fica.Nenhuma importãncia ao clarão da lua se a rua é deserta ou semi-habitada.Tanto faz,a vida não escolhe palavras.Não é importante ser Pedro ou João.Tanto faz,o nome não nasce com o homem,se intensifica,acostuma as pessoas ao clarão da noite,ao porão da lua,às pedras da rua(o amor...inconstante,quando volta e passa),qualquer outra coisa é mais importante.Tu,peregrino que vaga em meio a essa gente,que é tua gente,igual em tudo;na vida,na morte,na dor e no riso,leva a tua cruz solitária entre tantas cruzes,segue o teu caminho como anjo nú nascido das penas.Este campo tórrido,de magros espinhos,é teu pergaminho.Sacrifica teus pés descalços sobre brasas quentes,durma onde alcança a tua fome,rasga a tua veste,passe do cansaço como se a face fosse um quadro rupeste.E depois espera tua companheira de olhos escuros,suores linfáticos.Conserva teu sonho pra quem não te conhece,ah,pra quem não te conhece!

Toquei a realidade num sonho.Lá fora o céu levantou a madrugada e um mundo paralelo adormeceu.A alma insana voava,eu tremia debaixo dos lençóis e assim passavam as horas.Olhei para o infinito e perguntei:"Onde?"e o que procurava não estava no infinito.Então olhei para todos os cantos da Terra e perguntei:"Onde?"também não estava na Terra.Depois adormeci e sonhei,dentro do sonho me vi,e fora do corpo a realidade procurava-me.Nem a Terra,nem o infinito era maior que o sentimento daquele instante,então despertei e disse:"Aqui!"

Olho para um céu distante e vejo estrelas rindo de minha ledice.Pequeno príncipe,se tu visses como o mundo mudou...foi-se a magia dos baobás gigantes,foi-se as rosas falantes e os vulcões removíveis.Como eu queria as filosofias da raposa,como eu queria todas as formas possíveis de amordaçar um carneiro!Procuro um carinho irreconhecível.Ponho a fronte em frente às mãos para que reconheçam em meus olhos aquilo que me atormenta.Vejo o vulto que se apresenta e confio.Sinto aumentar a minha dor e a minha confiança.Me disse uns olhos,me disse,ue a clara expressão mais triste há de levar-me aonde for com o corpo e o espírito lasso escondendo em meu cansaço um leve gemido de dor.

Primeiro ao filho o pai deixa os traços,depois segue o rebento formado,desmimado:"Benção meu pai."Caminho ingresso,depois,regresso...na parede fotos de entes passados,de antes queridos e agora lembrados.Primeiro o encanto,depois algo presumível como o envelhecimento em antigos quadros de pó.Que a memória é moldura e a parede segura um rosto,lembrança e só.Em silêncio parte todas as dores do mundo.

Oh meu amigo morto,que amou muito,chorou pouco e viveu menos ainda!No teu último riso há vários sorrisos.Do amigo que diz:"Não tema o que a cena lhe diz,confia que fui teu fiel amigo!"O semblante feliz...no teu último riso há o desafio lançado aos que ficam e esperam nisso superar a dor.Há o amor do pai e há o amor da mãe,irmãos e amigos,como um dia infindo,há o riso indo com a manhã do morto.No teu último sorriso há um único riso,de amor,de conforto,confiança(Sê forte!),um último riso superando a morte!

/////////////////////Ao meu amigo que por uma fatalidade do destino nos deixou em 4 de abril de 2002,vitima de acidente de moto aos 26 anos.saudades meu amigo,mas sei que ai no céu vc nos olha e nos guarda.um abraço do uálaaa...!

Gilberto de Carvalho
Enviado por Gilberto de Carvalho em 23/11/2006
Reeditado em 14/08/2009
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