Identidade
Amava as coisas e o modo como elas aconteciam, nunca reclamou sua condição e podia rir do que não tinha sem criar desejos infantis, pois sempre as vivia num pensamentosinho vago e miúdo. Era simples como o seu dia: bocejo, café, rua, café, bocejo, banho, bocejo, pijama, bocejo, café (muito café), barriga vazia, cansaço e então bocejo, cama, bocejo e o vazio da noite. Comer sempre foi luxo, nem por isso desistia e quando podia fartava-se sem vergonha dos modos primitivos à mesa. A comida jamais reclamou suas mãos sujas ou a boca xadrez ou a roupa rasgada, tampouco a baba nas mangas dobradas e corroídas sempre das traças malvadas que como pulgas e outras pragas o atacavam na noite bastante. A barriga nunca fez exigências nem questão de se olhar ao espelho ou parecer bonita e a forma jamais o impedira de realizar peripécias na cama quando tinha parceira, quando não, as mãos jamais lhe foram ingratas.
Nunca teve medo, nada lhe parecia pior que o dia anterior e fazia saltar da concavidade seca da face os olhos, ainda que cotidiano fosse, ainda que sempre o tivesse vivido. (Asseguro-me agora de que isso lhe conferia a possibilidade de permanecer vivo.)
Era falso consigo. De uma falsidade inocente e despretensiosa; objetivava não mais que a sobrevida e sua manutenção, ainda que em trapilhos, aos pedaços ou em sua plena – mas pequena – forma. Nada lhe fazia diferença e essa constante e uniforme frieza configurava-lhe o olhar sisudo e as sobrancelhas sempre atentas que poucas vezes, por ação da sublime falsidade, rompiam-se feitos bolsas cheias e sujas pelas salpicadas bochechas que pontilhavam um discreto e ameaçado sorriso.
Nunca a vida pareceu-lhe tão bela qual naquele dia - o dia em que até cumprimentos recebera – não podia imaginar seu fim. A morte era um mistério seu. Se pensava nela sentia dores, lamentos, impulsos de escárnio, cargas volumosas de perguntas, mas sempre tudo muito falso. Conhecia somente algo próximo da vida e questionar o entendimento do além das horas respiradas era a ele mais que podia tentar num dia de pouca comida.
O dia transpirava cansaço e todos espelhavam a sua morte, só ele não via. Não estava acostumado a ver muitas coisas. Talvez não reconhecesse um prato com boas carnes, um banho de boas ervas, roupas de bons ares, mas poderia se quisessem e pagassem comer algumas horas de cimento enquanto erguia algumas paredes ao sol dos pobres que é o sol ardente e castigante de todos os dias parcos de carboidratos.
Conspiravam seu expirar. O pôr do sol seria testemunha do acaso daquela morte. As ruas, antes ingratas, sorriam no caminho. Todos os esbranquiçados dentes se mostraram para ele que sentiu pela primeira vez vergonha dos seus, não porque fossem menos brancos, mas porque eram menos contínuos na linearidade da gengiva. Houve quem lhe dissesse bom dia e a isso ele, que não sabia como responder, gemia alguma coisa entre beiços que se assemelhava mais do ranger das portas, que se fechavam para sua imagem quando pedia comida nas casas, do que com palavras em série tentando expressar uma novidade intrigante. Era de se esperar que não tivesse habilidades com a fala. Falava algumas poucas vezes, umas sozinho, outras com um cão com o qual dividia habitualmente um pedaço da calçada no intervalo para o almoço. Não comia nessas horas vagas, não que não tivesse acessos de fome e fraqueza, mas não se propunha a luxos. Não os dispunha.
Naquele dia pareceu-lhe que seu corpo entre gente era bem vindo. Ousou atinar esse raciocínio, surpreendeu-se por ter raciocinado além de seus limites caseiros e por ter se sentido surpreso. Sensação boa de sentir-se bem quisto. Não que nunca fora, mas não se lembrava da última vez. Verdade que há muito a mãe morrera e por isso não podia saltar em sua lembrança o último carinho sincero entre seres identificáveis. Talvez fosse isso ser gente. A identificação. Identificava-se às vezes com o cão. Sensação.