LEMBRANÇAS DE UMA SAUDADE (completo)
Minha avó sempre dizia que a pobreza criava a miséria; e que reproduz o político. Por isso ela nunca votou na vida. Era analfabeta e sempre dizia que não queria ser responsável pela progressão geométrica dos péssimos políticos. Para minha avó, nenhum político prestava e eu sempre lhe dizia: tem exceções vó. Não é bem assim. Mas ela nunca aceitava meus argumentos. Nem minha mãe também quase não votava porque seguia a linha de pensamento da minha avó.
Hoje, internado nesse manicômio, esperando para sentir as dores de mais uma injeção que logo mais receberei, lembrei dessas coisas e comecei a rir comigo mesmo.
Fui uma pessoa importante, tinha cargos, funções, imóveis, alugueis, bom salário; mas hoje vivo entre dormir, acordar, tomar remédios e vivendo nessa expectativa de ver mais um dia para poder contemplar um sol batendo em meu resto; sentindo o vento refrescando meu corpo e ouvindo, nem que seja pela última vez, o canto gostoso dos pássaros, aos quais dedico muito amor e carinho. Tenho carinho pelos pássaros como pela minha mulher, embora ela quase sempre fale de forma agressiva comigo. Reconheço que dou motivos para isso. Amo minha mulher, mas às vezes, ela perde a paciência comigo porque me tornei muito chato, teimosa depois do início da doença.
Não sei já me apresentei, mas sou Fabrício Fellini; esse Fellini, embora de origem italiana, é em homenagem a meu bisavô por parte de pai, que era um cearense porreta, expulso de sua terra e transportado na marra para o Estado onde passou a morar. Com o navio da Marinha ancorado no porto de Fortaleza, os soldados desceram com armas em punho dizendo: ou vai para a guerra ou vai cortar seringa e ajudar os americanos a produzir pneus, Não teve muita escolha. Arrumou as poucas coisas que lhe restavam e rumou para a nova terra, como se diz, sem lenço e poucos documentos arrumadas em uma maleta de madeira.
Muito pouca coisa lembro de minha estória do passado, só o que me contava meu pai, que tinha escutado de seu pai, meu avô, que ouviu do pai dele, meu bisavô.
Fincou residência, a qual foi repassada para meu avô; depois para meu pai que a vendeu e passou a morar na capital, onde foram criados seus dez filhos.
Era comum, naquele tempo, as famílias terem entre dez e quinze filhos, e com a mesma mulher. Meu pai teve dez filhos. Também era comum naquele tempo, os filhos estudarem na Europa. Os pais podiam ser analfabetos mais pelo menos um de seus filhos tinha que virar doutor.
Sei apenas que meu avô, marido de minha avó, pai de meu pai, tinha plantação de cacau, fumo e umas poucas e preguiçosas vaquinhas que as criava soltas pelo mirrado campo que possuía e que vendia o leite e as outras pequenas produções para empresários da cidade, que faziam contrabando; além de poucos, mais produtivos pés de seringueira. Meu avô, que não participava e nem sabia das atividades ilegais dos empresários que lhes compravam a produção toda, sempre viveu e morreu pobre, apenas sustentando a ganância e a usura dos empresários.
Alguns desses empresários construíram hotel, lojas e outros negócios também. Acho que legais, agora.
Certo dia, a casa de meu avô tombou para um lado, tantas eram as sacas de café empilhadas para suprir o contrabando dos seus compradores. Faltava açúcar na cidade e meu avô produziu açúcar mascavo para adoçar o café e depois passou a estocar sandálias havaianas que seriam usados para reforçar o contrabando do qual meu avô não participava e nem sabia disso.
Considero minha avó, meu avô, meu pai e minha mãe, todos como verdadeiros heróis; viver naquela pobreza danada e ainda ter dez filhos! Meu pai seguiu a receita de meu avô e teve também dez filhos, com minha mãe.
Enquanto aguardo para tomar minha injeção dolorida que não sei para quê doença serve, e aguardo com paciência minha morte chegar, penso no que minha avó dizia sobre política. Embora nunca tenha concordado com ela, achava que tinha razão porque pobreza gera a miséria; a miséria diminui a frequência nas escolas; sem escolas as crianças não aprendem; se não aprendem ficam burras; se ficam burras não se interessam por política; se não se interessam por política não formam massa crítica, e se não formam massa crítica, não sabem votar direito; se não votam direito, votam em qualquer candidato.
Votando em qualquer candidato correm o risco de eleger qualquer bandido que só tem o interesse em ficar rico. Senhores que, como eu, encontram-se internados nesse hospital, já tomaram conhecimento de alguém que tenha sido punido por roubalheira de dinheiro público...?
Agora existe uma Lei de Ficha Limpa para proibir a candidatura de políticos condenados. Só isso não vai adiantar nada porque permitir ou não permitir a um político se eleger, mesmo com filha limpa ou suja, é o voto e o voto consciente só existe com investimentos em educação.
Mas isso não ocorreu comigo, não. Fiz duas faculdades, tenho massa crítica, sei escolher meus candidatos, mas geralmente ainda sou enganado em minhas análises porque o voto é uma procuração que se passa em branco para alguém nos representar. E aí é que reside o perigo!
Chamo-me Fabrício Fellini Bisneto, em homenagem ao nome de meu bisavô, já disse isso mais não tinha colocado o “bisneto” porque acho isso desnecessário. Poderia ser simplesmente “Fabrício Fellini III”. Ficaria com mais ar de nobreza! Tenho um amigo que não usa o nome “Silva” porque já existe mais “Silva” no mundo que bala em época de guerra!
Contou para o filho meu avô, que contou para o filho dele, meu pai, que sempre que vinha à cidade frequntava o Cabaré Chinelo e gostava de se envolver com as putas polacas e francesas que dançavam vestidas com roupas provocantes e sensuais; mas ainda decentes. As putas ainda não se expunham em praças e nem procuravam os homens naquela época. Acho que herdei no meu bisavô esse gosto pelo perigo! Mas já pedi perdão e fui perdoado por minha mulher. Hoje só me dedico a escrever e divulgar meus textos para os muitos amigos que ainda tenho nesse meu resto de vida!
Chegou a enfermeira para aplicar minha injeção e volto depois de sentir a alucinante da picada da agulha. Nunca gostei de picadas de injeções e cheguei a ficar com flebite de tanta injeção que tomei na veia.
Pronto. Já aplicaram a injeção na minha bunda! Não foi na veia dessa vez; mas, na bunda! Ela achou que minhas veias estão muito inchadas! Agora, posso continuar com meus delírios! Ah, como eu estava dizendo, a enfermeira que aplicou a injeção na minha bunda e com qual prazer desci meu pijama velho, é uma morena gostosa e tesuda que pensei em bolinar por baixo de sua roupa branca. Senti um desejo grande por ela quando a vi entrando toda de branco, com aquela calcinha vermelha por baixo. Deu para ver isso pelo tecido branco de sua fina calça que usava para proteger o improtegido, o corpo e as partes dela. Sinceramente, se fosse diretor de um hospital qualquer, não permitiria enfermeiras com esse tipo de roupa. Mas, como não sou, até gostei!
Como já narrei para vocês, meu bisavô frequentava o Cabaré Chinelo, sempre que visitava a cidade e gostava de ver as prostitutas polacas e francesas se esfregando no colo dos barões da borracha daquela época, quando o Estado tinha pouco mais de 80 mil habitantes e eles sempre andavam pelas ruas, de paletós de linho branco e chapéu coco - os ingleses, franceses, açorianos, portugueses e outros ricaços...- Não lhes contei ainda que foi o avô da mãe de minha esposa que comprou para o Estado a residência de um dos “barões da borracha” para servir de sede do Governo.
E que o pai dela foi um político honesto até morrer pobre. Se vivesse até os dias de hoje, o pai da minha esposa morreria pela segunda vez se pelo menos lesse pelos jornais ou ouvisse pela televisão, os escândalos que envolvem a classe política, do deputado ao vereador, passando pelo governador, o prefeito e outras autoridades públicas. Poucos se salvariam nesse mar de lama! Acho que ele daria razão para minha avó, embora minha avó nunca tenha votado em meu sogro. Que pena!
A origem do meu sogro, como de resto a origem de todas as famílias daqui, comprovadas por pesquisas, foi nordestina. O tataravô, o bisavô, o avô, enfim...sempre alguém era de qualquer Estado do nordeste.
Aqui nesse hospital fedido e malcheiroso, esperando a aplicação de minha próxima injeção e aguardando a morte ou a brisa entrar por aquela janela lateral de meu lado esquerdo, para pelo menos sentir a brisa do vento nem que seja pela última vez, penso e escrevo as bobagens que desejar, sem qualquer censura como existia na época em que comecei a exercer o jornalismo e tudo tinha que passar pela prévia de um censor da Polícia Federal, até o dia que comecei a escrever com o nome de Eleutério e enganei os “urubus” da ditadura militar que não entendiam nada de nada e só faziam o que a ditadura lhes determinava que fizessem! Eu escrevia “alho” e os censores entendiam “bugalhos”, ou seja, não entendiam nada com nada do que eu passei a escrever a partir do novo nome que inventei em homenagem a um amigo analfabeto, casado com uma socióloga.. Nem sabiam o que era “pseudônimo”!
No dia do aniversário de 90 anos, minha esposa entrou aqui no hospital com as duas mãos ocupadas. Em uma trazia uma torta comprada em uma padaria daqui de perto; na outra, trazia um vaso com um girassol lindo, com a pétala amarela em meio as sementes escuras – sabiam que agora o girassol também serve para produzir biodiesel?
Achei lindo e maravilhoso o gesto de minha esposa: simples, singelo e muito romântico para quem estivesse, quem sabe, comemorando seu último aniversário. Vi a cena de um campo, onde todos os girassóis caminhavam a meu encontro, saindo do campo ao som de valsa, transportados todos pelo gesto simples de minha esposa. Foi uma das cenas mais lindas que vivi, embora na cama de um hospital!
Cortei a torta; a enfermeira Claide emprestou-me a faca, mesmo informando-me que se alguém da administração soubesse, ela seria demitida. Comi um pedaço e distribui o que estava restando entre os outros profissionais do hospital, inclusive à enfermeira bunduda.
Uma vez, fiz até uma aposta aqui no hospital: chamei a enfermeira Cleide, a que me emprestou a faca para cortar a torta e disse a ela: “se você encontrar minha veia com uma só furada de agulha pagarei pizzas à você e suas colegas”, disse. Três se apresentaram, tentaram, mas nenhuma delas conseguiu, porque todas minhas veias estavam com hematomas e flebite, todas roxas. Divertia-me com isso. Mas sofria muito com as furadas de agulhas, às vezes até 20 tentativas para uma única bem sucedida.
Também brincava muito com as enfermeiras, informando minha pressão, mesmo antes da medição que faziam pelo menos três ao dia, de manhã, no início da tarde e no início da noite. Como sempre que a mediam dava 12 X 8; “Vai dar 12 X 8”, eu dizia para quem viesse medir meu pulso. Eu sempre acertava!
Os “barões da borracha” que desfilavam pelas ruas da cidade com seus paletós de linho branco, chapéus coco à cabeça, e desciam até o porto para providenciar o embarque de suas produções ou pegar um de seus filhos vindos da Europa, onde estudavam e estavam de volta em grandes navios à vapor, falando fluentemente o francês...
Tiveram que construir uma cidade toda para que os “barões da borracha” continuassem produzindo nos trópicos quentes. Construíram casas com portas e janelas altas, uma abertura entre as paredes que não eram levantadas até o teto e sempre com um porão por baixo da casa para ventilar mais porque o condicionador de ar só fora inventado muito mais tarde. Na época, dentro das casas, quando podiam, usavam pedaços de gelo colocados dentro de bacias para refrescar um pouco o ambiente. O gelo era produzido por geladeiras que funcionavam com gás. Mas isso era só para as famílias mais abastadas e nem toda casa tinha esse costume ou podiam adquirir o gelo que era vendido em carroças, no meio da rua.
Já chegou a nova injeção. Estou ansioso para baixar meu pijama e mostrar minha bunda para a enfermeira gostosa que se chama Cleide. O nome de minha enfermeira é Cleide, pois ouvi outro paciente chamando-a pelo nome.
O fétido hospital em que dormimos à noite, é cheio de macas que rangem a toda hora, quando transportadas pelos corredores, conduzindo pacientes ou levando mais um defunto, o que é comum por aqui.
Veio hoje outra enfermeira para dar-me os remédios e aplicar as injeções. Tomo remédios das 5:30 horas da manhã, quando acordo, às 22:00 horas, quando durmo. Não tive com a nova enfermeira bem mais jovem e delicada, o mesmo ímpeto que tinha com a enfermeira Cleide, de arriar e mostrar minha bunda branca devido unicamente à total falta de sol.
Fiquei com medo de mostrar-lhe a bunda e ser interpretado que estivesse lhe assediando, mas ela também pediu para baixar meu pijama e aplicou a injeção em minha bunda também. Tive medo de receber um processo. Também, seria apenas mais um dos muitos que respondi quando era jornalista.
Com a nova enfermeira, como já disse, senti vergonha! Mesmo assim, arriei o pijama e ela aplicou-me injeção na bunda.
Quando deixar ou hospital – se deixar, caminharei com minha esposa de mãos dadas pela praia. Faz tempo que não fazemos isso, passear de mãos dadas pela praia, recebendo a brisa do amanhecer em meu rosto ou vendo o sol beijar o rio no início da noite.
Diziam-me, na infância, que que sempre ao final de um arco-íris havia sempre um pote de ouro. Mas quem de vocês já conseguiu chegar a um arco-íris, pois eles só servem para nos fazer caminhar, sempre?
Depois vamos a um cinema assistir a qualquer filme, mas temos de frequentar em um dia de promoção, pois meu salário ficou muito reduzido depois do início de meu tratamento. Ela vai entender, com certeza, e não vai me chamar de mãozinha, como tinha costume de fazer enquanto pagava mais um de nossos imóveis e eu pedia para haver mais controle dentro de casa! Sempre que eu a via esbanjando em alguma compra, dizia-lhe cuidado, dinheiro não dá em árvore! Agora ela entende o porquê de eu dizer sempre isso.
Desejo rever e agradecer à gerente de minha conta bancária, que me atendeu quando eu tinha dinheiro e quando eu gastei tudo com remédios, exames caros, tomografias, consultas e tratamentos que velhos necessitam, principalmente depois de aposentados por invalidez e sofrendo os efeitos do fator previdenciário.
Quem é velho como eu, aposentado por invalidez como foi meu caso, aos 50 anos, necessita de mais remédios que antes. Não deveria sofrer o efeito previdenciário, quem se aposenta por invalidez! Mas não: aposentadoria por invalidez, por tempo de contribuição ou por idade ficam todos os velhos em um bolo só para o fator previdenciário!
Quero sonhar com minha esposa um sonho lindo, cheio de flores, rosas mesmo! No sonho, criaremos um animalzinho só para espantar a solidão que nossos filhos nos proporcionam depois de casados. Eu a pegarei com minhas mãos frágeis e flácidas e caminharei com ela pelo Passeio do Mindu, pelo Parque dos Bilhares ou quem sabe retornarei à Praia da Ponta Negra mais uma vez, para lembrar-me de como eu caminhava com minha vô. Mas tenho que voltar à realidade e a realidade é que estou em uma cama de hospital.
Que bom que estão cuidando bem de mim. Depois de cinco anos, de idas e vindas aos médicos ainda não sei qual a doença que tenho. Acho que são várias e decidiram aparecer todas de uma vez só. Só pode ser isso: á estou com 92 anos e é próprio da idade do “condor”, com dor aqui, com dor ali...com dor acolá!
Minha mulher diz que sou um touro porque nenhuma doença me derrubava, mas essa me derrubou. Mais vou levando!
Como eu ia dizendo, meu pai e minha mãe não estudaram muito, mas sabiam o necessário para viver e criar os dez filhos que fizeram.
A agricultura, eram as especialidades deles. Deixaram o campo e passaram a morar na cidade. Passaram dificuldades, venceram e deram aos filhos o necessário para viverem com dignidade. Os buscaram no estudo dos filhos uma forma de melhorar de vida; os filhos, alguns contentaram-se com o que já sabiam, o que não era muita coisa, mas já lhes satisfazia e decidiram não estudar. Já conheciam o “beabá” como se dizia na época, e as quatro operações de conta. Isso já lhes parecia suficiente para tocar as suas vidas!
Vivo hoje um segundo de cada vez como se fosse o último. Viverei assim enquanto os nove tipos de remédios que tomo todos os dias me mantiverem vivo; depois...não sei!
Henry Vickham, em passos firmes, trajando o impecável paletó de linho branco e o chapéu coco, que nunca o retirava da cabeça - talvez só para dormir -, usando óculos redondo esquisito, amarrado em uma espécie de corda, corpo esguio como de quem já pegou malária, tifo, febre amarela e outras moléstias, convidou meu bisavô Fabrício Fellini para ir junto com ele entregar umas sementes de seringueira para o rei da Inglaterra.
Vickman teve um trabalho danado para recolhê-las a todas; não conhecia a selva, se embrenhou na mata, se salvou de picadas de cobras, carapanãs, escorpiões, mas não se livrou de picadas que lhes fizeram contrair malária, tifo, febre amarela e outras doenças que deram-lhe um ar de velho e abatido, com a pele do pescoço já meio flácida.
Meu bisavô se encontrava nesse instante, sentado tranquilamente em sua cadeira, outro lado do salão, na mesa colocada num canto da sala central do Cabaré Chinelo, todo forrado com o mais imponente tecido de cor vermelha, importado da Inglaterra ou França, não lembro mais, enfiando de goela abaixo uma talagada de cachaça. Não presenciei essa cena mais meu bisavô a contou para meu avô, que contou para meu pai e eu a recebi do modo que lhes estou narrando agora.
Federico Fellini, meu bisavô, sabendo que não gastaria um centavo na viagem; aceitou. Henry Vickhan era um botânico endinheirado que andava sempre de chapéu coco e terno de linho branco. Ele e meu bisavô ficaram amigos de bar, mas Vicham era afeiçoado ao meu bisavô pelo seu caráter, honradez e porque certa vez ele o salvara de encrencas com putas no Cabaré Chinelo.
A conversa foi breve; no dia seguinte zarparam no navio Aurora. Levariam uns 20 a 30 dias para chegar ao destino. E 18 para voltar.
Fizeram uma boa a viagem no confortável e limpo navio Aurora, Vickham e meu bisavô. De vez em quando entrava uma camareira no interior de suas cabines para trocar os lençóis da cama e arrumá-la direito. Dois homens viajando sozinhos? Um horror! O navio Aurora teria sido o mesmo que trouxe as dançarinas francesas para se apresentarem em um grande show num imponente teatro construído no meio da selva, só para inglês ver.
No cais do porto da Inglaterra navio Aurora atracado, meu bisavô pensou na música “Porto de Lenha”, desceu as escadas e se deparou com pessoas falando uma língua estranha. Meu bisavô, quando olhou para o porto, o viu velho e quebrado como diz a música “Porto de Lenha”.
Essa música, composta por Aldísio Filgueiras e gravada por Torrinho, séculos mais tarde, teve uma visão de futuro. Meu bisavô repassou a letra mediunicamente para Aldísio Filgueiras. E o não é que o recebedor da mensagem, a escreveu direitinho?
Meu bisavô não entendia nada do que falavam os ingleses. Vickham era inglês mais pelo menos falava uma língua arrastada, que meu bisavô Fellini compreendia. Dessas pessoas que falam andando pelas ruas, ele não entendia nada. “Que diabos de línguas são essas?”- perguntava para si próprio.
Minha bisavó ficou esperando o meu bisavô retornar da cidade para saber se ele havia efetuado as compras para suprir o mês inteiro. No interior que eles moravam, seu “Panta”, o regatão, só passava de quando em vez. E olhe lá! O bisavô, embarcado no navio Aurora, com todo o dinheiro que tinha, nem se lembrou disso. Aliás, nem se lembrou de minha bisa que vivia a dois dias de viagem de motor para a cidade. Ele só pensava nas putas que poderia encontrar na Inglaterra! E de vez em quando, na mulher que arrumava seus camarotes, mas não teve coragem!
Ao retornar, o bisavô descreveu para à bisavô uma cidade cinzenta, úmida, feia, uma cidade de gente branquela, com uma língua estranha. Depois, seguiu para o meio da selva, onde morava.
Entrou na mata, mandou contar leite de seringa, depois a defumou e mandou vender tudo. Mais não teve para quem vender a produção de meu bisavô Felício Fellini. Achou tudo muito esquisito. Nem os compradores ingleses se interessaram mais! Achou entranho de novo e mais estranho era para mim, aqui nesse leito imundo de hospital, esperando meu remédio chegar e me lembrando dessas coisas.
Como os senhores paciente, ouvem e riem do que lhes conto agora, deixarei de narrar-lhes histórias de meu bisavô e os senhores nunca ficarão sabendo como foi por atender a um pedido dele que a Princesa Izabel assinou a Lei Áurea e libertou os escravos no Brasil. Nada lhes falarei também da importância que meu bisavô teve para libertar os escravos em meu Estado. Nada lhes falarei da amizade dele com Thodoreto Souto e que foi em função dos movimentos abolicionistas e atendendo a um pedido dele que foi assinada a Lei que libertou os escravos. Deixarei de contar-lhes, por delírios febris agora, que meu bisavô foi amigo de vários Governadores do passado, já no final da vida, quando esperava tranquilamente dobrar “o cabo da boa esperança”, enfim, não lhes contarei mais nada, nadinha mesmo, porque vocês riem dessas minhas lembranças de uma saudade!
Meu trisavô, dizem, nasceu na cidade de Florença, na Itália. Foi o “Barão de Nápolis”! Viveu no ano de 1348, foi amigo íntimo do escritor Giovanni Bocaccio quando decidiu deixar sua cidade com quatro mulheres e três homens, os fez rainhas e reis por um dia, para escrever seu livro “Decamerão”. Nessa época, a Itália sofria de uma das mais terríveis pragas médicas de sua história.
Vem daí a importância de meu bisavô na história de meu Estado. Ele herdou tudo do seu pai, o “Barão de Nápolis” que ficou rico, comprou terras no Brasil e as deu a meu bisavô, Felício Fellini para ocupá-las, pois não existia título de propriedade de terra naquela época.
Como ele era “Barão de Nápolis” tornou-se amigo do rei de Portugal, antes de este abandonar sua “santa terrinha” e vir se esconder no Brasil, fugindo da invasão de Napoleão Bonaparte, da França em suas terras.
Minha mulher vem me visitar hoje? Ela tem que vir. Estou com saudades! É terrível ficar nesse hospital olhando o branco das paredes e o vento sempre entrando pela janela aberta! Vou pedir para minha esposa fechá-la, quando ela chegar. Não tem ninguém aqui para fazer isso! Todos são pacientes como eu. Ah, não tenho certeza se minha mulher vem mesmo me visita. Acho que ela saiu aborrecida com o meu enxerimento para a enfermeira gostosa! Acho isso, mais não tenho certeza. A única coisa que tenho verdadeira certeza é que quando minha mulher decide que dois mais dois não são quatro, não, tem quem a faça mudar de opinião. Costumo dizer que minha mulher é como burra velha: quando empaca, não tem quem a faça caminhar pela trilha! Mas deixa para lá! Casei-me com ela já assim, agora não posso mais reclamar. Tenho que aprender a conviver com isso!
Henry Vickham, em nome do Kew Gardens, de Londres, pode ter sido o primeiro pirata ecológico do mundo. O certo é que depois que ele entregou ao rei as sementes de seringueira e o rei as mandou plantar na Malásia e o Ceilão, possessões inglesas e cheias de escravos, nunca mais meu bisavô conseguia vender a produção dele. A Inglaterra fornecia 9% de borracha ao mundo. Em um ano, o amigo de meu bisavô do Kew Gardens, com a ajuda do rei da Inglaterra e a colaboração de mão-de-obra escrava, ultrapassou o criador e a cidade praticamente ficou a “ver navios”, como se dizia.
Nunca mais conseguiu vender a produção dos poucos pés de seringa que cultivava, recebida como herança de família de meu tetravô e que foi repassada como herança hereditária para família, passando de pai para filho, mas eu não quis saber disso.
Como não vendia mais nada de sua produção também, em 1929, meu avô mandou queimar todos os pés de seringueiras. Acho que seguindo o exemplo de meu avô, outros produtores queimaram também todos os seus pés de café, laranja, cacau, fumo...porque não tinham mais preço na bolsa de Londres, desde a noite de outubro daquele ano. Os poucos pés que não arderam no fogo, mas também não adiantava mantê-los em produção, foram repassados à meu pai, que herdou uma pequena parte dessa herança maldita.
E eu, aqui, com flebite nas veias de tantas injeções, e já com a bunda dolorida, recordo essas coisas que me foram contadas por meu pai, que recebeu de seu pai, que lhes teria repassado por meu bisavô, que recebeu as de seu pai, meu tataravô, o de origem italiana que começou toda essa saga. Não posso atestar e nem saber se tudo isso aconteceu mesmo como lhes conto agora porque eu inda era um projeto de vida e nem tinha ainda saído de dentro do testículo de meu pai.
Só resta-me mesmo procurar ver fotos de mulheres peladas e me lembrar, com muita saudade, de minha mulher, que há tempos não me visita, mas acho que virá hoje, sem muita certeza. De noite, penso nela. De manhã cedo, ao acordar, tenho o cuidado de virar o colchão para o outro lado, retirar a roupa de cama e tocar fogo. Não quero que ninguém saiba de meus pensamentos! Amo minha mulher, já disse. E lembro-me dela como posso!
A enfermeira, agora a mesma de sempre, a Cleilde e veio hoje me aplicar uma injeção para baixar a febre. Mas como está ficando cada vez mais gostosa essa minha enfermeira, cada vez mais bunduda! Arriei o pijama e recebi a picada da agulha na bunda. Depois foi embora sem me falar nada. Estranho! A enfermeira sempre gosta de conversar comigo, ouvir as estórias que costumo contar.
Mas hoje não aconteceu nada disso: ela entrou. Arriei o pijama; recebi a picada da agulha...e a enfermeira saiu para atender a outros pacientes. Será que a enfermeira tinha ficado com raiva de mim só por que tentei boliná-la na última vez? Talvez!
O meu Estado - não o meu estado de saúde porque este sempre foi péssimo, mais o Estado como um espaço de terra, pessoas, leis...da minha estória era antes próspero e com um futuro brilhante na primeira década do século XIX. Mas ficou abandonado, atrasado e sem esperanças no futuro. As condições sanitárias pioraram; eram ainda maiores onde meu bisavô morava, com falta de médicos, medicamentos e outras necessidades básicas! Diziam até que onde meu bisavô Fellini morava era uma área farta; “fartava tudo”. Mas meu bisavô nem desconfiava que nele residisse uma parcela de culpa no processo de suas terras!
E por falar em terras, a que meu pai recebeu de meu avô, que recebeu de seu pai, meu bisavô, que teria recebido de meu trisavô, todos diziam que era mentira que os seringalistas eram os verdadeiros donos das terras, porque todas elas lhes foram cedidas por Getúlio Vargas e, em troca, o Governo recebia impostos pela exploração das seringueiras. E ninguém pode saber disso. Contei isso em segredo, em confiança e espero que não se passe adiante. Não quero que meu bisavô venha a sofrer represálias por isso, até porque mexer com defunto é mexer com casa de caba de igreja! Sempre há revide! Nem lhes contarei mais que o meu Estado já contribuiu com mais de 40% da dívida externa do país, que vem desde a Proclamação de sua Independência!
Já lhes contei que meu passa-tempo aqui nesse hospital e olhar fotos de mulheres peladas em revistas masculinas para me lembrar de minha mulher e também sempre me lembrar da enfermeira gostosa que aplica injeções na minha bunda todos os dias! Só que ninguém sabe disso, ainda!
Aliás, ultimamente estou com essa mania estranha de ver fotos de mulheres nuas só para lembrar-me de minha mulher, companheira, amiga e minha deusa. Sem ela, não vivo! Não me canso de elogiar suas curvas corporais gostosas e as suas partes sempre apetitosas. E a bunda! Ah, que maravilha e dura a bunda que ela tem!
Ah, tenho uma coisa para contar para meus colegas pacientes. Sei como começou a história do vibrador. Por favor, não riem, vou lhes contar. Mas esse um assunto é muito sério e não caberá risos. Senhoras pacientes, tampem seus ouvidos, por favor. Ei, você aí? Não desejo constrangê-la com minha estória. A senhora já tem quase 80 anos! Não ficaria bem ouvi-la.
Meu bisavô contou para meu avô, que contou para meu pai que segredou para mim que foi o doutor Joseph Mortimer Granville quem patenteou o primeiro vibrador eletromecânico com forma fálica, porque estava cansado de massagear os clitóris de mulheres que sofriam de útero ardente. Histéricas, o procuravam em seu consultório. E por que estou falando desse assunto agora? É porque minha mulher, vendo-me definhando a cada dia, pediu para comprar um para ela, porque jura que nunca mais arranjará outro homem tão chato e ranzinza como eu. Bastou um!.
Só posso dizer que de 1880 até os dias de hoje, muitos tipos e formas foram inventados, só não sei se vou dá-lo para minha mulher como presente. Acho que não!
Cadê o médico, não vem me ver hoje? O médico já passou? Todos os que me visitam estão usando roupas brancas e que eu nem percebi que o senhor idoso que saiu daqui a pouco, era meu médico neurologista. Queria perguntar qual é a doença que eu tenho, porque até agora nenhuma pessoa me disse. Só me dão remédios, mas não sei para o quê. Acho que estou ficando doido agora. São tantos pensamentos, são tantas coisas para dizer! Amanhã vamos ter votação, mas não sei como deixar esse hospital para votar em meu candidato preferido. Mas vou dar um jeito, não quero ser mais um culpado pela escolha de péssimos políticos. Começo a entender agora porque minha avó não votava. É que o coração desiste quando parece que a morte vai chegar...
Não sei quem teve a infeliz idéia de mandar construir um hospital tão longe do centro da cidade! Acho que é porque eles não queriam ter doidos, pedintes ou maltrapilhos caminhando pelo centro da cidade. Com um hospital tão distante assim, hoje temos que entrar em ônibus velhos, enfrentar uma hora de viagem, ficar acompanhado de pessoas indesejáveis até chegar aqui.
Não sei se bem por isso, mas acho que foi! Nem quero pensar nisso agora. Só desejo ter de volta minha saúde plena. Para tê-la, não importa os sacrifícios de tenha que enfrentar desde que eu fique bom. Mas como vou ficar bom, se nem eu nem os médicos sabem o que tenho?
Tenho fé em Deus que sairei desse aperreio momentâneo.
Ao sair, vou repensar todos meus valores, minhas crenças, meus objetivos e metas. Darei mais atenção aos meus amigos, mais carinho às leituras que faço. Verei o sol, a lua, as estrelas, os dias e as noites com mais admiração e respeito.
Já disse que tenho dois filhos com minha mulher? Não! Pois tenho dois, um não é bem meu, mas pai é o que cria e eu o criei ou ajudei a criá-lo desde que tinha 14 anos, quando casei com à mãe dele. Um é adolescente, gosta de matemática, e o outro é formado em psicologia. Vive só de música e acha que o mundo sempre gira em torno dele, como se ele fosse ainda da época do teocentismo! O que não é verdade. Mas, fazer o quê? Essa juventude a toda igual. Sem tirar nem por.
Durante minha vida, escrevi e lancei alguns livros com o nome de Frederico Fellini Neto, mas eu gostaria que em vez de “Neto” fosse “III”. Daria um ar de nobreza ao nome!
Como estava dizendo – ah, a enfermeira bunduda acabou de entrar aqui para aplicar-me mais uma injeção, só que desta vez não precisarei arriar o pijama e mostrar-lhe a bunda, pois será contra uma trombose que adquiri e será aplicada na barriga desta vez -. Quando deixar este hospital onde já gastei todo meu dinheiro com remédios, exames caros e outras necessidades, darei mais atenção aos que eu quero bem.
Dentre meus amigos verdadeiros mesmo, tenho meu poeta preferido, um empresário que admiro e respeito outro empresário que conheci ao longo de minha vida, uma advogada que ajudou a publicar um de meus livros na juventude e tantos outros de ocasião, quando se está por cima, porque quando se estar por baixo, eles fogem que nem cachorros com pira com medo de banho. Muitos dizem que conhecem Frederico Fellini Neto, mas poucos são os amigos que eu os considero de verdade. Ah, tem um médico também daqui do hospital que vez ou outra colhe examina meu sangue. Quero-o muito bem a ele também, mas só eu e ele sabemos disso. É segredo! Não quero que ninguém pense que virei gay depois de velho cacareco.
Verei o sol com mais amor; a lua com mais carinho, as estrelas com mais cuidado. Ouvirei e sentirei o vento batendo em meu rosto e esvoaçando meus cabelos desalinhados. Se sair dessa maca, ainda.
Preciso sair daqui! Não agüento mais esse hospital fétido e malcheiroso. Acho que minha avó tinha razão: as políticas para a saúde são boas; o problema é o “meio” que não faz a aplicação das verbas como deveriam.
Infelizmente tomei uma decisão: aos 94 anos, deixarei de votar! Como minha avó dizia, não quero ser mais um a engordar os bolsos, as meias, as cuecas e as bolsas de um mau político que se apresenta com cara de anjo mais depois executa as políticas públicas com um jeito de demônio! Infelizmente tomei minha decisão muito tarde, pois pensei que, com meu voto, estava contribuindo para melhorar o país, mas me enganei!
Esqueçam tudo que eu disse antes: memória de velho às vezes não é muito precisa, principalmente quanto aos políticos. Afinal, sou apenas um velho gagá ultrapassado, aposentado aos 50 anos, com o fator previdenciário para reduziu meu salário da ativa em mais de 80% de seu valor...Terei que aprender a viver com esse mísero troco que recebo como aposentado!
Ah, se amanhã minha cama amanhecer vazia, não pensem que morri. Simplesmente voltei para meu lar, “um palacete aéreo” como o definiu meu poeta querido; mas só na visão de um poeta tão inspirado e inspirador é que pode existir um “palacete aéreo”! Moro em um apartamento bom, no alto de um edifício. Já morei em outros apartamentos também, mas acho que agora me encontro mais confortavelmente instalado.
Nunca quis morar em prédios antes; pagar condomínio todos os meses...mas minha mulher me convenceu. Depois que morei no primeiro, ainda modesto, tomei gosto. Adquiri e morei a em mais dois. Um o mantenho alugado porque nunca se sabe o dia de amanhã! Hoje vivo com uma miséria da Previdência! O outro, dei como entrada para adquirir o meu atual.
Darei mais uma chance aos políticos e votarei nas próximas eleições – se ainda estiver vivo e se conseguir sair deste leito! Mas preciso que eles melhorem a situação dos aposentados por invalidez de qualquer natureza. Ganham muito pouco os coitados! E é quando mais precisam! Como é o meu caso!
Um velho com mais de 90 anos não tem mais esperanças em nada, nem em acordar no dia seguinte. Daqui, sei que me encaminho rápido para o cemitério se é que alguém ainda vai querer carregar meu caixão, certamente da pior qualidade.
Ah, quando eu morrer mesmo, procurem entre minhas coisas, meus afarrabos, que vocês encontrarão um seguro para custear minhas despesas de enterro. Fiz um seguro até para tratar meus dentes, mas nunca o usei.
Voltemos de novo ao meu “palacete aéreo” como não o definiu direito o poeta. Ele é bom – não posso negar, mas é modesto para o padrão de vida que tinha antes de adoecer. Mantenho e tenho muito carinho com os quadros presos às paredes do meu apartamento; mas ele nem é tão suntuoso assim!
Tenho tudo o que desejo e na hora em que eu bem deseje usá-los: uma boa vizinhança, piscinas, sauna, academia de ginástica; enfim, tenho o conforto necessário para um velho decrépito como eu, vindo de uma linhagem de italianos, misturado com cearenses que depois se misturou com índios e, por último, me venho. Sou, portanto, a mistura de muitas raças e não como o Governo tenta apregoar que existe só uma raça no país. Estão querendo imitar a Alemanha! Uma raça de arianos, onde já se viu uma coisa dessas!?
Achei isso um absurdo, mas fazer o quê? Eles é que mandam no país...! Posso até morrer, mas continuo afirmando que raça é uma invenção criada pelos tolos para nos enganar com um discurso de “estatuto da igualdade racial”.
Alguém meta a mão em minha gaveta aqui ao lado de minha cama, pois trago sempre comigo uma foto de meus avôs paternos. Quero vê-la mais uma vez. Desejo rever a foto de minha avó sempre com seu cabelo preso no alto da cabeça. Quero me lembrar de meu avô andando com dificuldades pela rua devido a uma hérnia que teria descido e se alojado em seu saco – segundo meu pai me confidenciou. Mas acho mesmo é que deram um chute certeiro no saco dele. É, deve ter sido isso. Não sei se isso é verdade, mas quero lembrar minha avó com seus mais de 70 anos às costas passeando comigo pela estrada da Ponta Negra. E, de mãos dadas, ainda! e eu brincando com ela. “Ai, vó, a senhora tá tão enxuta que pode até arranjar um namorado garotão!”. Eu dizia isso e ela ria. Depois eu dizia: “não paquerem minha vó porque ela é comprometida e está acompanhada!”. Ela ria mais ainda.
Quero recordar tudo isso antes de eu morrer de velhice mesmo, não de doença. Minha avó morreu com mais de 70 e meu avó bem antes.
Droga, depois de 60 dias eu aqui internado e fazendo seguidos exames, os médicos ainda não descobriram minha doença! Não aguento mais. Acho que vou dar uma de doido, sair correndo pelos corredores, quebrando todos os alarmes contra incêndios e gritando “fogo, fogo”, para que eles me deem alta médica.
Tentei, dei uma de doido, dizendo “saíam todos, o hospital está pegando fogo!”, apertava os locais de alarmes contra incêndios. Veio um enfermeiro correndo atrás de mim, me alcançou e me amarrou nessa cama imunda de novo. É por isso que hoje amanheci todo amarrado e com meus pulsos doloridos. Mas não estou preso na polícia, ainda bem. Eu não suportaria tanta humilhação: velho, doente e ainda preso injustamente só porque não quiseram dar minha alta médica. Por isso eu digo a vocês. Não tentei essa lazeira de novo porque comigo não deu certo.
Lá vem outra injeção para mim: “vai ser na bunda ou na barriga dessa vez?”. Perguntei para não arriar e mostrar minha bunda inutilmente! “Na barriga de novo, contra a sua trombose!”. “Ah, melhorou! Não suporto ter que sair mostrando minhas intimidades todos os dias”, respondi e fiquei aliviado porque em vez de mandarem a enfermeira bunduda e gostosa vir me aplicar a injeção, mandaram-me um homem – e acho que é gay!. Tinha uma voz muito macia para os padrões masculinos!
Nada contra os gays, até gosto deles. Mas eles lá e eu bem aqui, no meu canto, sossegado. Acho que o gay precisa ser muito macho para aguentar um cacete deste tamanho entrando no rabo dele. Eu quase não aguento nem uma agulha de injeção entrando e dilacerando minhas carnes!
Já disse que só deixarei um seguro de vida quando eu morrer. Não deixarei qualquer outra herança como eu pretendia, porque gastei tudo com médicos, exames e medicamentos. Isso porque tenho plano de saúde. Quem não tem morre mesmo é na fila de espera!
Quando eu estava trabalhando como Assistente Social em um pronto socorro 24 horas, via como os médicos tratavam os pacientes. Era quase na base do chute, aos berros. Mas quando atendiam em seus consultórios, por planos de saúde era “um senhor pra lá e um senhor pra cá”. Falsos esses médicos!
Quando dirigi um órgão público na área social, tomei uma decisão: o médico ou o dentista só podiam atender 12 pacientes em 4 horas, ou seja, um paciente a cada 20 minutos. Se fosse diretor de um hospital público, acho que adotaria a mesma coisa, mas não se isso seria possível, pois as políticas públicas nessa área sempre são medidas pelas quantidades e não pela qualidade dos atendimentos. Os médicos não têm culpa do que lhes acontecem. Eles são vítimas, tanto quanto os pacientes!
Não estou falando do médico que examina meu sangue aqui. Esse é ótimo. Sabiam que ele também já foi reitor de uma universidade? Pois é! Foi reitor e depois quase que o elegeram de novo. Não venceu porque reitora que concorria com ele, teve mais votos entre professores. Ele teve mais votos entre os alunos! Graças a Deus! O aluno é que importa!
Tinha dito que nunca mais iria votar em político quando e se eu sair daqui com vida. Voltei atrás. Sou um velho caduco e, em velho, não se confia muito não! Ora digo uma coisa, depois digo outra! E assim vou levando minha velha vida cansada e quase já esquecida!
Darei um último crédito aos políticos. Não de ocasião que aparecem, dizem um monte de bobagens pela televisão e o povo acredita. Minha avó já dizia – a miséria reproduz a falta de educação que reproduz os políticos -. Pretendo contrariar a filosofia de minha avó.
Droga, será que nem internado me dão sossego! Acabei de saber que meu primeiro filho, um com minha namorada de infância, está envolvido com drogas, procurou tratamento e quer ser internado. Sócrates e Hesíodo estavam certos. Médico britânico, Ronald Gibson está certo quando cita quatro autores de até 4 mil anos antes de Cristo e na voz deles afirma: “nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos”; por isso “não tenho mais nenhuma esperança se a juventude assumir o poder de mando amanhã”.A mãe dele me contou isso mais eu não devia ter espalhado para vocês. Não pega bem para mim, ela disse ao final de sua conversa. Quis saber dela como conseguiu o número de meu telefone pessoal. “Ora, ora, você já foi uma pessoa famosa. É só perguntar que todo mundo sabe dizer!”. Fiquei abismado com a informação: pelo passar dos anos – e botam anos nisso! – pensei que já tivessem me esquecido, quanto mais guardado o número de meu telefone. Prometi - já que não tenho muitas posses hoje – ajudá-la no tratamento, mas completei: “como eu poder, ok?”. Ela concordou. “Estão está bem”, respondi.
Felizmente meu filho ficou tão doido com o uso de drogas que decidiu procurar tratamento, antes que apareça em uma rua qualquer crivado de balas. Agora ele vai ver como é horrível se internar em hospital! A comida é ruim, sem sal e não tem gosto de nada, com poucas exceções de alguns poucos hospitais. Mas acho que ele vai ficar em hospital público, se é que já existe hospital público para tratar a dependência química. Mas acho que não existe! Infelizmente! São apenas promessas de políticas para isso, feitas no auge das disputadas. Mais prática mesmo que é bom, não tem nada!
Eu, mesmo como Assistente Social, não consegui ver que meu primeiro filho estava se envolvendo com drogas. Com o Estatuto do Menor, fiquei totalmente sem saber o que fazer porque ao mesmo tempo o Estatuto tirou o poder familiar; não o assumiu. Hoje não se pode falar nada contra um filho porque eles conhecem tudo de direito; mas não sabem que todo direito emana de um dever que vem antes.
Durante meus estudos, ainda adolescente, tinha palmatória de madeira na mão nas aulas de matemática, se trabalhava e não tinha nada de exploração do trabalho infantil. Hoje, tudo mudou para pior; uma pena! Não estou contra o Estatuto, mas o certo é que o Estado não se aparelhou de forma adequada para poder cumpri-lo.
Depois que ela desligou, fiquei pensando em meu filho. Ele foi fruto de uma relação que tive com ela, aos meus 17 anos. Eu era adolescente, ainda. Vai ver que foi por isso que ele se envolveu com drogas! Estudou nas melhores escolas, queria que ele fosse igual ao pai dele que foi picolozeiro, engraxate, lavador de carros, vendedor de jornais, estudou muito e foi alguém na vida...mas ele fez tudo diferente: fugia das escolas para jogar, era agressivo, preguiçoso e não queria nada com nada!
Tenho uma teoria comigo: o homem devia nascer aos 90 anos, casar lá pelos 30 e se aborrecer até morrer com a esposa ao seu lado!
Velho é uma coisa estranha mesmo: quanto tem 15 anos, quer ter 30, quando tem 30 acha que já viveu demais. O que diria eu então, que já passei dos 90, mas ainda me acho um garotão sarado, com as pelancas todas arriadas nos baços, peito, pescoço, mãos, saco, orelha que ficou maior e cheia de pelos. Decidi: se eu sair daqui, deixarei de alimentar à falta de investimentos nas áreas da saúde, educação, políticas sociais, de segurança, enfim, em todas as nossas políticas públicas. Portanto, deixarei de votar e não volto mais atrás. Palavra de um velho que já viveu muito, já experimentou muito, já escreveu muito e já votou muito!