Olhos de Daniel

Tento fazer um exercício com pequenos comentários que ouço. Quase todos os dias, pessoas amigas ou simplesmente conhecidas me oferecem uma enorme gama de temas que circulam entre mim e o que vivo.

Contamos com situações inúmeras e tão diversas... Pensar é a única ponte entre nós, o que assistimos e o que sentimos. Se não pensarmos, paramos e tanto faz. A iminência das dificuldades vem imergindo de toda a parte. Sentar e assistir a tudo como se tomasse um café ou um chope frente à praia, seria impossível para quem vive de maneira intensa aquilo que assisti. Soaria como um torpor irresponsável. A vida grita e a dor alheia importa inegável, e irremediavelmente cada vez mais.

Passamos diariamente por homens e mulheres que, à semelhança de pobres animais, carregam tristemente suas carroças para tentar o sustento. Um sustento é claro, que só servirá para que esperem o final dos próprios dias que sempre se evidencia muito próximo.

Lembro de que há muitos anos, caminhava na rua com uma amiga e seus filhos. O pequeno Daniel, com seus 6 anos mais ou menos, olhava fixamente pra um desses carrinheiros e começou a chorar. Era um choro diferente, não esse soluço comum às crianças. Olhava, as lágrimas caiam e seu rosto era profunda tristeza. Perguntamos o que havia e ele respondeu com uma pergunta: mãe, aquela carroça não tinha de ser puxada por um burrinho? Por que o velhinho está fazendo isso?

Guardo muitos tesouros dessa vida, mas entre eles está agigantado em mim, o Daniel e suas observações de infante! Foram tantas! Como quando, andando pela praia, novamente comoveu-se até as lágrimas e sentado na areia encolhido com o rostinho entre as pernas fez outra de suas perguntas: - mas mãe, esse menino não tem minha idade? Ela disse que sim. – então por que está carregando esse peso e trabalhando? Não deveria estar aqui brincando como eu?
O menino carregava um isopor cheio de latas que...

Vendia na praia, cervejas e sucos
Decidido e franzino, gritava:
“Olha a água!! Cerveja gelada!!”
Sentado na areia Daniel brincava
Fantasia de castelos e heróis
Sempre aptos a salvar.
Tão cedo desmoronado
Aquele sonho brincante
Diante da realidade
Que ali saltava aos seus olhos
Na pele de outro infante.
Pesou-lhe demais a visão
O fardo que o franzino carregava
Oprimia-lhe o coração
Desfez-se o castelo de areia
Destruído entre lágrimas
Desprezado por algo urgente!
E nós, adultos passantes...

onde será que perdemos o nosso olhar? Adultos maduros e responsáveis, cheios de psicologia e logo pensávamos: isso não pode continuar assim. Esse menino não pode ficar sofrendo desse jeito ou onde vai chegar? Outras vezes com a superioridade que nos arrogamos dizíamos: deixa, é só não dar muita importância que ele pára com isso; deve estar querendo chamar a atenção. E quantas vezes o vimos chorar e recusar qualquer explicação. Talvez porque já tivesse entendido o quanto tudo aquilo não importava a quase ninguém. Adulto do coração, entendeu que estava batendo com as mãos em portas de pedra e preferiu calar e não se ferir ainda mais.

Onde perdemos a sensibilidade ao ponto de não importar que uma mulher durma na calçada com um recém-nascido nos braços? Será que um dia tivemos os olhos de Daniel? Não sei mas tento, ainda que lentamente, abrir os olhos da alma. Hoje, acredito piamente que estava com a razão aquele que docemente falou que enquanto houvesse alguém infeliz não poderíamos ser completos... plenos... ser felizes de verdade. Se não acreditarmos e partirmos para luta, nós que somos adultos, quantos sonhos infantis vamos matar ao longo da vida? Quantos “Daniéis” vão se calar para nossa insanidade?

Sônia Prazeres