EU JÁ NÃO SOU O QUE ERA (repostando)
"Eu já não sou o que era: devo ser o que me tornei."
Coco Chanel
Na Catalão dos meus ascendentes,
das competentes armas de fogo,
das carabinas de papo amarelo,
dos jagunços e dos muitos coronéis,
dos bárbaros crimes e dos “heróis” cavaleiros...
Três dias depois do natal de 1965,
nascia eu, para uma vida singela,
numa casinha simples
cercada de roça de milho.
No meu quintal tinha um rego d’água
e um pé de carambola,
aonde um bem-te-vi,
a cada amanhecer,
vinha alegrar minhas manhãs.
Era um pequeno sítio
no interior de Goiás,
município de Catalão.
Foi a mulher parteira
quem me arrancou
do conforto daquele útero.
Considero-a, até hoje,
uma verdadeira carnífice.
Meu pai carpia chão,
minha mãe socava pilão.
Meu pai pedia chuva,
minha mãe pedia não.
Meu pai, calos nas mãos,
minha mãe, na alma,
reclamava de tudo.
Meu pai,
sem acompanhamento de
qualquer instrumento musical,
entoava algumas modas caipiras.
E, eu, ficava idealizando o cenário
das estórias daquelas músicas.
Era o menino caçador
que foi morto pela onça feroz,
que mesmo ferida veio pela fumaça...
E, eu, miúdo ainda, imaginava a mata,
o bicho, o ataque e a morte do guri.
Era feliz além da conta e nem sabia.
A cada anoitecer eu recebia
divertindo nas minhas divagações,
as primeiras lições da vida.
Quem as ditavam não sabia,
que estavam lapidando aquele pequeno;
que estava formando o cidadão de hoje.
Era a cultura e os costumes do meu povo
bailando na minha frente e deixando marcas
permanentes nos porões desta minha mente.
Hoje em dia, para a minha tristeza ou alegria, não sei;
“eu já não sou o que era, devo ser o que me tornei.”
Assim era assim o lugarejo alegre da minha infância...
Quando pensava estar entediado,
divertia-me afogando pintainhos
no rego-d'água, montando a cavalo,
fugindo de vacas, atravessando pinguela
ou socando os irmãos mais novos e fracos.
Vivia feliz correndo à toa de pés no chão,
a emoção solta e louca corria no meu coração.
Cresci assim:
sem videogame e sem aula de inglês.
Não fiz natação, nem karatê,
nem assistia à televisão.
Fui deparar-me com uma
sessão de desenho animado
com onze ou doze anos,
mesma época em que
experimentei coca-cola,
na época minha droga predileta.
Mesmo assim era feliz.
Aos domingos arraial, amigos,
avós, almoços, futebol, brigas,
alvoroços, e, de novo, coca-cola.
nas segundas-feiras mutirão para lavrar o chão.
Era gente de todos os jeitos e manias.
Uma companheirada boa a limpar
roça de milho e feijão e mais tudo
que a terra nos dava.
Coração generoso o daquele chão.
Às dez horas em ponto,
sentados nos barrancos,
nos calcanhares ou no cabo da enxada,
comíamos arroz, feijão, macarrão,
galinha ao molho de açafrão preparada
em fogão à lenha e panela de ferro.
Que saudade, daquele tempero e daquele tempo!
Quando chovia naquelas tardes de calor,
era a pescaria que nos alegrava.
Aqueles bagres eram troféus valiosos
retirados do nosso corregozinho.
Era o êxtase da vida!
Naquele tempo não invejava
nem o Presidente dos Estados Unidos,
Aliás, nem sabia que existia a América.
Não sabia da copa do mundo,
nem que o Brasil já era tricampeão mundial de futebol.
Era tanta ilusão e distanciamento de tudo,
que nem sabia que no Brasil os militares
haviam tomado o Poder.
Que AI-5 que nada!
Pensava somente em matar
pássaros com o estilingue
e tomar banho no poço azul
que tinha nos fundos da minha casa.
Censura e repressão
naquele meu mundo não existiam.
Porão, somente debaixo da minha
casa assoalhada, e, não servia para nada
além de habitação para incontáveis
e assombrosos morcegos.
Tortura maior que eu me deparava,
era somente quando meu pai matava
um suíno com faca afiada enfiada bem no coração.
Ou frango caipira destroncando o pescoço do bicho.
Mas, maldade, eu juro, não havia mesmo,
era somente para saciar a fome da prole.
AI-5, era simplesmente a forma errada de dizer cinco ais,
quando era surrado, sempre de maneira injusta,
pela minha mãe, nada mais.
Mas, eu já a perdoei. Setenta vezes sete. Amém, amém.
Andava quilômetros até a escola.
Não tinha biblioteca nem livros,
nem guarda, diretora ou merenda.
Era um professor magricela que vinha
de uma estrada de chão vermelho,
montado numa bicicleta velha.
Tinha, porém, cuidados de sobra
com aqueles meninos-bichos.
E, como que por milagre,
ainda conseguia lhes ensinar algumas coisas.
Alguns, mais aventureiros, no futuro
tentariam até serem escritores,
relatando, às vezes, a própria história
do mestre e seus pupilos sonhadores.
Os vizinhos...
Ah! Esses eram umas figuras!
Tinha o Nego baixinho,
irmão do Zeca lelé,
que era irmão do Antônio ladrão.
Havia, ainda, o Eurípedes e seu filho Astério,
que para qualquer moléstia
vinha logo a receitar:
“fumo no imbigo é bão.”
Tinha gente que acreditava
e até acatava esse exótico remédio.
Se curava, até hoje não sei. Matar também não matava.
Meus pais,
que jamais deixaram faltar-me o básico,
dando-me sustento, carinho,
discernimento e responsabilidade.
Com o passar dos anos
viram crescer um homem comum,
responsável e prático, forjado nas dificuldades,
curtido nas virtudes e nos exemplos de vida que teve.
Lapidado pelo tempo, não deu brilho forte,
também não se ofuscou, nem tão pouco se dilacerou,
simplesmente vingou, vingou, simplesmente. Aleluia!